Pegadas de crocodilo com 129 milhões de anos descobertas no cabo Espichel

Além das pegadas de crocodilo e dinossauros já identificadas, os investigadores põem a hipótese de haver também na zona ovos de dinossauro. Está a ser preparado um congresso internacional em Sesimbra para falar destes achados.

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Os trabalhos de campo no cabo Espichel, Sesimbra José Sena Goulão/Lusa

Pegadas raras de crocodilo com cerca de 129 milhões de anos foram descobertas nos últimos dias na zona do cabo Espichel, Sesimbra, pelos mesmos investigadores que em Janeiro anunciaram ali ter identificado 614 pegadas de dinossauro.

Os primeiros dias de trabalho de campo, depois de um Inverno dedicado à publicação de artigos científicos, superaram as expectativas dos exploradores. Segundo o paleontólogo Silvério Figueiredo, presidente do Centro Português de Geo-História e Pré-História, as pegadas de crocodilo agora descobertas são mais raras do que as de dinossauro.

“Encontrámos algumas pegadas de crocodilo, além das de dinossauro, talvez mais importantes do que as dos dinossauros, uma vez que pegadas de dinossauro existem bastantes em Portugal. Pegadas de crocodilos contemporâneos dos dinossauros já existem menos, assim em dois, três sítios, no máximo, identificadas em Portugal e não deste período. Existem do Jurássico. Do Cretácico, estas serão provavelmente as primeiras a serem identificadas”, avançou o investigador à agência Lusa.

A equipa de Silvério Figueiredo, professor no Instituto Politécnico de Tomar e autor de várias publicações sobre dinossauros, inclui outros especialistas, como o geólogo Pedro Proença e Cunha, professor catedrático no Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra, que acompanha os trabalhos no terreno.

Nas falésias do cabo Espichel, procuram identificar, em formações do Cretácico Inferior, vestígios da vida há cerca de 129 milhões de anos, tendo já encontrado novas pegadas de dinossauro e de outros animais.

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Os trabalhos de campo no cabo Espichel, Sesimbra José Sena Goulão/Lusa

“Vamos tentar identificar trilhos, medir os trilhos para saber algum comportamento que eles tinham, nomeadamente a direcção. Temos marcas que nos indicam que provavelmente o crocodilo estava nadar e vamos também orientá-las, saber qual era a orientação, para depois fazer um estudo para saber de onde é que eles vinham, para onde iam, bem como os estudos sedimentares e estratigráficos, feitos pelo colega Pedro Proença Cunha, para sabermos os ambientes”, indicou Silvério Figueiredo, acrescentando que essas informações ajudarão a caracterizar melhor o sítio e a saber mais sobre o comportamento dos dinossauros e como as pegadas se formaram.

Lado a lado com as pegadas de crocodilo, são visíveis pegadas de dinossauro, o que não significa que os animais tenham coexistido. A passagem das diferentes espécies pelo mesmo local pode estar separada por séculos ou mesmo milénios, de acordo com o investigador.

“Pensamos que, se não todas, pelo menos a maioria das pegadas dos dinossáurios terá sido feita numa camada superior, que depois deformou esta em que estavam as pegadas do crocodilo. Terão sido feitas em momentos diferentes”, admitiu.

Nos próximos dias, os cientistas esperam continuar a encontrar pegadas de dinossauro, ossos e dentes daqueles animais, de antepassados dos actuais crocodilos, de pterossauros e outros restos de fauna, como tem vindo a acontecer.

Junto ao mar, numa anterior fase de prospecção, cujos resultados foram anunciados no início do ano, foram identificadas 614 pegadas de dinossauro, uma quantidade considerada rara numa área de “poucos metros quadrados”.

Haverá ovos de dinossauro?

Os investigadores acreditam também que é possível encontrar ovos de dinossauro, à semelhança do que aconteceu na Lourinhã, e também de crocodilo. “Podemos ter aqui ovos de dinossauro e podemos ter ovos até de crocodilo”, disse o geólogo Pedro Proença e Cunha.

Especialista em estratigrafia e sedimentologia, Pedro Proença e Cunha estudou ovos de dinossauro encontrados na Lourinhã, alguns com embriões preservados. As camadas geológicas que constituem as escarpas do cabo Espichel revelam, ao olhar do geólogo, potencial para encontrar ossos e ovos dos animais que há 129 milhões de anos ali deixaram impressas as pegadas que os investigadores estão hoje a seguir.

A comprová-lo estão vários ossos e distintos fósseis já encontrados ao longo de anos de investigação. Na presente campanha, o investigador encontrou um úmero de dinossauro (um terópode pequeno) perto do local onde o paleontólogo Silvério Figueiredo descobriu outros fragmentos de animais pré-históricos; dinossauros, crocodilos e peixes.

“As margas têm potencial não só para terem ossos, mas, por exemplo, para terem ovos”, exemplificou Pedro Proença e Cunha, apontando às formações rochosas que rodeiam o local em exploração.

“No que concerne à componente geológica, há aqui uma exposição ímpar, eu diria no mundo! Está classificada e vale a pena ser usufruída por um público alargado, não só nacional, mas internacional. Mas evitando que haja destruição”, defendeu.

Para que o local, a riqueza da paisagem inserida em zona protegida e o património que encerra possam ser usufruídos pelo público em geral, o geólogo considerou que será necessária “alguma preparação”, por forma a orientar visitas com guias e evitar que apareçam “caçadores de fósseis”. Divulgar os achados sem correr o risco de ver esse património destruído é sempre “um equilíbrio delicado”, assumiu.

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O geólogo Pedro Proença e Cunha e o paleontólogo, Silvério Figueiredo na zona do cabo Espichel José Sena Goulão/Lusa

O local onde os investigadores hoje trabalham era há 129 milhões de anos uma laguna de clima tropical seco, frequentada por animais com toneladas de peso, herbívoros e carnívoros, que deixaram as marcas impressas em várias camadas e em momentos distintos.

As transformações que a Terra sofreu, com “o levantamento da cadeia da Arrábida” e a erosão causada pelo mar deram lugar às arribas que hoje se apresentam como “folhas do tempo” aos olhos do geólogo.

Cursos de água existentes no local contribuem igualmente para a erosão e para expor diferentes camadas de sedimentos, nas quais o especialista identifica climas, faunas e flora.

“Identificámos vários tipos de pegadas, quer de dinossauros, quer as novas, de crocodilo, além de que noutros casos podemos encontrar gastrópodes, como podemos encontrar outros tipos de fósseis. Tudo isso nos ajuda a situar”, referiu.

Através das pegadas os investigadores esperam conseguir identificar os animais que as produziram, o seu peso, trilhos e comportamentos, sendo que em alguns casos o trabalho é dificultado pela abundância de pegadas de espécies diferentes, algumas em sobreposição.

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Os trabalhos de campo no cabo Espichel José Sena Goulão/Lusa

O projecto inclui elementos de outras instituições, como o Geopark Naturtejo e colaboradores estrangeiros, da Universidade do Rio de Janeiro, especialistas do País Basco e de França. Os investigadores – que trabalham naquela zona desde 1998 – são também acompanhados nesta fase por um grupo de jovens do programa Ciência Viva.

Afonso Dias, aluno do 11.º ano na área de Ciências, foi o primeiro a ver as marcas de crocodilo gravadas na rocha. Limpava o campo com os colegas quando, no primeiro dia de trabalhos, se deparou com os orifícios que corresponderão às garras do crocodilo pré-histórico.

“Fomos tirando a terra e depois notei estas quatro marcas. Vêem-se muito bem. Perguntei ao professor Silvério o que é que poderia ser. Ao início, o professor Silvério achou que podia ser de pterossauro, mas depois disse-nos a todos que podia ser de crocodilo e começamos a encontrar muitas mais ao longo do tempo. Como se pode ver, estas aqui e outras espalhadas por esta zona”, mostrou o jovem, fã do filme Parque Jurássico, de Steven Spielberg, e de museus como o da História Natural, em Lisboa.

Uma lenda antiga

Para debater as mais recentes descobertas na zona do cabo Espichel, a Câmara Municipal de Sesimbra pretende realizar em Outubro um congresso internacional de paleontologia, disse à Lusa a vice-presidente da autarquia, Felícia Costa.

De acordo com a autarca, que detém o pelouro da Cultura, a confirmação da data está apenas dependente das condições sanitárias associadas à pandemia de covid-19, mas o objectivo é que seja pelo menos um congresso ibérico. “Não foi possível fazê-lo antes, até porque as condições sanitárias da pandemia não nos permitiram, mas em Outubro esperamos que as condições estejam melhores do que estão neste momento”, afirmou a vereadora.

A intenção é organizar um congresso focado nas pegadas de dinossauros já documentadas e inseridas nos circuitos visitáveis do município (Pedreira do Avelino, Mua e Lagosteiros) e debater as mais recentes descobertas.

“Já havia alguns registos em termos destas pegadas, não no seu conjunto total, mas pelo menos alguns vestígios deste conjunto grande de cerca de 600 pegadas que foram agora reveladas”, indicou Felícia Costa. “Já não era de todo desconhecida essa passagem dos dinossauros pelo nosso território”, sublinhou ainda, dizendo que esta informação será integrada no geocircuito e em publicações de divulgação.

A presença dos dinossauros na região está associada a uma lenda que durante gerações perpetuou a ideia de que as marcas gravadas nas escarpas do cabo Espichel seriam pegadas de uma mula (mua) responsável por um milagroso salvamento, da Senhora do Cabo.

A história está ilustrada nos azulejos setecentistas da Ermida da Memória e contada nos painéis informativos ali colocados: “A lenda relata o sonho de dois idosos, que viram a Santa ser carregada por uma mula branca subindo a falésia e marcando o trilho com os seus cascos.” O trilho foi mais tarde identificado como sendo de dinossauros saurópodes do Jurássico Superior e está hoje classificado como Monumento Natural.

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