A transformação das universidades na encruzilhada do PRR

Este é o momento em que o país, através das suas universidades e demais instituições de ensino superior, deve procurar superar o atraso de que padece em termos comparativos. Ou as universidades aproveitam o momento atual para se transformar, sem desculpas nem subterfúgios, ou os prejuízos serão imensos.

Diz-nos a História que o reforço do capital humano é essencial para o crescimento e desenvolvimento de qualquer sociedade. No momento atual, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é um projeto do país que traça um roteiro para a modernização da sociedade, para a criação de emprego e para uma reconstrução económica sólida, inclusiva e resistente que supere a crise e permita responder aos desafios da próxima década. O PRR não começa do zero. Pelo contrário, inspira-se noutros programas, como a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, apoia-se em diagnósticos e relatórios anteriores e surge no seguimento de numerosas medidas económicas aprovadas nos últimos meses de combate à pandemia, embora com limitados impactos económicos e sociais.

Um dos objetivos do PRR consiste na modernização e digitalização do sistema educativo, do básico e secundário ao superior, passando pelo aumento das qualificações das pessoas por via da aprendizagem ao longo da vida e da dupla formação profissional. Neste contexto, os responsáveis pela condução das instituições de ensino superior, particularmente as universidades, são desafiados, para não dizer forçados, a rever os modelos de gestão, como forma de assegurar a sustentabilidade das instituições.

Esta necessidade de revisão dos modelos de gestão acentuou-se nas últimas décadas e apoia-se nos seguintes factos: i) a universidade deixou de ter o monopólio da produção e disseminação do conhecimento, passando a partilhar essa função com empresas e outras instituições; ii) a formação tornou-se um elemento-chave para assegurar o desenvolvimento, a competitividade e o bem-estar em sociedade num mundo globalizado, o que já levou a um aumento da procura de formação/qualificação e a um crescimento da oferta; iii) a velocidade desta mudança e a sua complexidade exigem uma abordagem transversal, multidisciplinar e ágil por parte das universidades relativamente à investigação, ensino e transferência do conhecimento; iv) o impacto das tecnologias e do digital abre as portas à introdução de novas metodologias de ensino e a uma gestão mais personalizada e eficiente dos processos formativos; v) a globalização e a pandemia põem inevitavelmente em causa os modelos tradicionais de investigação e ensino, que tendem cada vez mais a ser híbridos e a apoiarem-se na ciência aberta.

A procura de formação superior tem crescido de forma constante nas últimas décadas e assim continuará por variadíssimas razões, desde logo pela necessidade que cada pessoa tem de ter mais conhecimentos e competências para poder lidar com a inevitável mudança que impõe o digital. Como corolário do crescimento da procura de formação, as universidades estão a reposicionar-se com vista à captação de mais estudantes, o que poderá ser feito por via competitiva ou cooperativa.

Esta mudança, incluindo o facto de muitas universidades passarem a optar pelo ensino online, terá um efeito que as suas administrações e o poder político não previram, qual seja o de se passar de um sistema fechado a um sistema aberto, em que os potenciais estudantes já não consideram apenas a universidade mais próxima como a sua primeira escolha, porque têm uma oferta online como alternativa.

Sabendo-se que existe uma distorção da procura no ensino superior por causa das enormes assimetrias no desenvolvimento do território, essa distorção aumentará em virtude das alterações estruturais no funcionamento do sistema, o que terá um impacto direto no financiamento das universidades através do pagamento de propinas e obrigará as administrações e o sistema universitário a reverem o modo de garantir a sua sustentabilidade.

Do lado da oferta, estamos também num momento crítico, dado que a disponibilização de formação ao longo da vida colide com um sistema deficientemente regulado, tanto no que se refere à oferta de formação como no recrutamento de pessoal docente. Além disso, as instituições de ensino superior estão organizadas para disponibilizarem ofertas muito formatadas que dificultam a interdisciplinaridade. Esta tripla barreira – excesso e ao mesmo tempo falhas de regulação, problemas nos campos do recrutamento de pessoal e da organização das instituições – aumenta a discrepância entre a oferta e a procura e leva a um fosso cada vez maior entre o que a sociedade (empregadores e cidadãos) exige e o que as instituições de ensino superior e, em particular, as universidades podem oferecer. Este efeito é agravado pela dificuldade de atrair “massa crítica” e talento, devido a um modelo pouco permeável à mudança e a um sistema de remuneração pouco competitivo à escala global.

O momento é de transformação, pelos fatores já enunciados (PRR e objetivos de modernização e digitalização do sistema educativo), pelo que nos devemos interrogar sobre como podemos transformar e desenvolver os modelos de gestão universitária, assegurando a sustentabilidade das instituições.

Numa perspetiva de boas práticas e de uma gestão universitária alinhada com o cumprimento do serviço público, a sustentabilidade garante-se por via de três processos complementares: a gestão da procura (leia-se: a procura do conhecimento e da formação), a gestão das operações para responder a essa procura e a gestão dos recursos.

Na gestão da procura, há que proceder à identificação das partes interessadas (cidadãos, empresas, governo) e das suas necessidades, com vista à sua concretização em produtos ou serviços segundo uma abordagem flexível e aberta quanto à conceção das necessidades de formação (com impacto na duração dos programas, na personalização, nas metodologias de ensino, nos conteúdos e na promoção da interdisciplinaridade), aos sistemas de avaliação (há um excesso de “academismo” que impede que se faça diferente) e à forma como os programas de ensino são regulados. Só deste modo será possível ter ofertas educativas que respondam às exigências, necessidades e possibilidades de aprendizagem ao longo da vida em sociedade. A diversificação da procura significará, por um lado, que as universidades terão de racionalizar e concentrar as suas ofertas formativas e, por outro lado, que devem estabelecer cada vez mais alianças com outras instituições, podendo assim destacar-se e ser competitivas face a uma oferta cada vez mais globalizada.

Na gestão de operações, há que avançar para ofertas personalizadas e multidisciplinares de acordo com modelos disruptivos. No plano metodológico, haverá a necessidade crescente de hibridizar os modelos online e presenciais, adotando também novas formas de colaboração entre docentes internos e externos às instituições, estes últimos ligados ao mundo profissional ou provenientes de outras instituições (outras universidades, centros de investigação ou organizações), com formas contratuais que o facilitem.

Na gestão de recursos, particularmente dos recursos financeiros, as universidades terão de planear as suas atividades segundo modelos de procura aberta e encontrar um equilíbrio entre recursos públicos (financiamento advindo do Orçamento do Estado), recursos provenientes de propinas e recursos provenientes de programas e projetos (através da transferência de conhecimento e de serviços). É aqui que as políticas públicas serão decisivas, no modo de financiar as universidades (as regras atuais são obsoletas e injustas!) e de garantir que estas serão responsáveis pela utilização dos recursos, assim como no peso a dar aos apoios e à procura de programas (subsídios, bolsas de estudo, etc.) aptos a assegurar a igualdade de oportunidades e o acesso equitativo ao ensino superior.

Um outro aspeto, não menos importante em termos de gestão dos recursos, para o qual é preciso um novo pensamento neste quadro da transformação das universidades, tem que ver com as infraestruturas. Em relação a estas, para as quais estão previstos “financiamentos” no quadro do PRR, a tendência deverá ser para apostar em modelos de ensino menos intensivos em termos de construção, uma vez que os modelos online (plataformas digitais e ambientes virtuais) terão um papel central, privilegiando-se o financiamento de infraestruturas tecnológicas e de investigação (laboratórios).

Este é também o momento em que o país, através das suas universidades e demais instituições de ensino superior, sustentadas em políticas públicas que estimulem o seu desenvolvimento, deve procurar superar o atraso de que padece em termos comparativos. Como? Modernizando o seu tecido produtivo, reforçando a sua capacidade de gerar emprego de qualidade, especialmente entre os jovens, mulheres e grupos sub-representados no mercado de trabalho, promovendo a eficiência energética e empenhando-se na transição para uma economia circular e digital que favoreça uma mudança de hábitos e de comportamentos. Para tal, é necessário apostar na formação das pessoas e apoiar a ciência e a I&D como elementos-chave na promoção da produtividade, do emprego e da transformação dos processos produtivos, sociais e ambientais, por forma a que a tecnologia e a inovação cheguem a todo o território e a todas as pessoas e se tire partido do potencial e das oportunidades do conhecimento aplicados à coesão socioeconómica e territorial. O que acabamos de dizer é indispensável para sobrevivermos como nação coesa e menos desigual.

De referir ainda que vencer estes desafios é essencial para concretizar entre outros o Objetivo 4 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, que, pela primeira vez, inclui as universidades como espaços que devem garantir uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. Ou as universidades aproveitam o momento atual para se transformar, sem desculpas nem subterfúgios, ou os prejuízos serão imensos.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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