O corporativismo dos militares e a reforma do alto-comando

Desde 1974 que existe um órgão intitulado Conselho de Chefes de Estado Maior (que reúne os chefes dos três Ramos e o CEMGFA). Mexendo porventura nas competências deste órgão e nas dos quatro respectivos chefes, não seria possível aperfeiçoar o dispositivo legal existente no sentido de obter porventura uma maior eficiência e operacionalidade?

Não tenho competência para opinar sobre a recente proposta de lei para alterar a organização do topo de comando das Forças Armadas portuguesas, nem de resto conheço os detalhes jurídicos e funcionais dessas modificações.

Mas as investigações de carácter histórico que realizei nos últimos anos sobre estes temas permitem-me talvez referir o que julgo ter apurado acerca do chamado corporativismo dos militares, e de que forma isso possa estar ligado com a reacção suscitada em um considerável número de chefes militares do mais elevado escalão pelo anúncio público desta reforma legislativa.

De facto, atento ao que se passou no país nos últimos 250 anos, julgo poder concluir dizendo que o dito corporativismo não é apenas uma miragem gratuita ou uma acusação malévola tendente a associar tal fenómeno ao regime político do Estado Novo. Literalmente, desde a segunda metade do século XVIII que o Exército e a Marinha constituem corpos especializados do Estado, actuando cada um no seu meio geográfico e técnico próprio, mas respondendo ambos a características idênticas: serem formações armadas, à ordem do poder político; serem corporações hierárquicas permanentes, com comandos unipessoais, eventualmente acrescentadas de contingentes de cidadãos recrutados; e, por razões técnico-guerreiras, incorporarem diversas segmentações profissionais (que foram naturalmente evoluindo com os avanços da técnica e dos modos de fazer a guerra) e beneficiarem de alguma especial protecção, devido aos riscos pessoais imanentes em tais actividades.

Ainda em Setecentos, na peculiar organização estatal de Antigo Regime, surgem já regulamentadas a formação inicial e as carreiras dos oficiais do Corpo da Armada Real, ou o Real Corpo de Engenheiros Militares. E em meados de Oitocentos criou-se o Corpo de Marinheiros da Armada, que subsistiu durante mais de um século. São exemplos que testemunham desta realidade, organicamente mais elaborada e avançada do que talvez o estivessem os Negócios do Reino, a Fazenda ou os Estrangeiros. 

Como ordenamento hierárquico linear, cada um destes corpos militares segmentou-se muito rapidamente entre três categorias profissionais distintas: oficiais, sargentos e praças – sendo que, durante muito tempo, a possibilidade de ascensão individual foi muito mais fácil entre estas duas últimas do que para a primeira delas. Originalmente, pela sua origem social; depois do Liberalismo, pelas exigências académicas e formação mais especializada e com bases científicas – os corpos de oficiais constituíram sempre, indubitavelmente, uma elite corporativa, ciosa dos seus privilégios mas também consciente das suas responsabilidades de poder ter que conduzir homens ao combate e ao risco de morte, o que exige condições morais e psicológicas muito particulares. Mas isso também gerou modelos de carreiras ou evoluções profissionais bem demarcados, nomeadamente nos aspectos da disciplina, das retribuições e das distinções honoríficas – que mais fortemente acentuaram as diferenças entre os três corpos hierárquicos.

Como acontece em outros meios sociais “fechados” (justiça, igrejas, academias, etc.), o orgulho de pertença a cada um deles tende a gerar comportamentos e atitudes de identificação e identidade colectiva própria, e, simultaneamente, de distanciamento (que, em casos extremos, pode ir até ao menosprezo ou à arrogância) em relação a outros corpos parecidos, mas diferentes. As rivalidades entre soldados e marinheiros assumiram formas diversas ao longo dos últimos dois séculos, mas foram reais. Por vezes, em determinadas circunstâncias, foram mais fáceis as relações entre marinheiros de países diferentes do que com os soldados da sua nacionalidade. A este fenómeno, sociologicamente analisável, chamou-se corporativismo (com ou sem aspas, quase sempre consoante a intencionalidade do falante).

Dada a complexidade dos enfrentamentos bélicos e a evolução das técnicas, quer no Exército, quer na Armada (e, muito mais perto de nós, na Força Aérea), processou-se um amplo movimento de especialização de funções, não apenas na orgânica e conjugação das unidades militares, mas igualmente no interior dos três referidos corpos hierárquicos, afectando os desenvolvimentos das carreiras profissionais. No Exército cristalizaram-se as “Armas” (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, etc.); na Marinha, as “classes” (abrindo perspectivas aos artilheiros, aos maquinistas, fuzileiros, torpedeiros e muitos outros). Por um tempo, cavaram-se algumas diferenças estatutárias entre “combatentes” e “não-combatentes” ou “auxiliares”. E a própria Força Aérea (aliás derivada da junção de duas forças aéreas primitivamente adstritas a soldados e a marinheiros) não se furtou a este fenómeno das “especialidades profissionais” internas, porém sempre com a evidenciação dos “pilotos aviadores”. Ou seja: além do corporativismo dos militares (em relação à suposta “sociedade civil”) e dos Ramos militares em si mesmos, é legítimo identificar fenómenos de micro-corporativismo no interior de cada um deles e de cada um dos seus grandes estratos hierárquicos.

O fenómeno social que, na história, nos ocorre possa ter sido protagonista de semelhantes processos de identidade-e-diferença é talvez o das ordens religiosas do Cristianismo medieval, incluindo as monásticas, as militares e as mendicantes. Todas imbuídas do mesmo credo identitário (e unidas face ao exterior); mas cada uma delas assumindo profundamente a sua diferença.

O que é que isto – o corporativismo militar e os seus micro-corporativismos – tem a ver com as hodiernas propostas de alteração das competências dos três chefes de Estado-Maior dos Ramos e do chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e da forma de comando militar integrado de todos estes corpos? Nada terá, directamente. Mas tem-se dito e escrito (ou deixado entender) que aquilo que levou à manifestação pública da opinião de 28 antigos altos chefes militares dos três Ramos, reservada ou crítica quanto aos termos e aos modos desta reforma, foi a perda da capacidade de comando superior de cada um dos Ramos (dos CEM) sobre as suas próprias forças (incluindo as operacionais, as logísticas, do treino e formação, etc.) – ou seja, o seu “corporativismo” –, agora associado à ideia da necessidade de comando conjunto (isto é, inter-Ramos) que as actuais missões militares que são ou podem ser confiadas às Forças Armadas exigem – e que isto seria implicitamente prejudicado pelo referido “corporativismo”.

Acontece que, desde a II Guerra Mundial, a conjugação do comando e emprego conjunto dos três Ramos das Forças Armadas é uma realidade palpável, independentemente do prosseguimento da necessidade de certas missões específicas de cada qual. No âmbito da NATO, este princípio teve acolhimento desde o seu início. E, numa missão de guerra estritamente nacional, como aconteceu com Portugal em África em 1961-74, ele esteve igualmente sempre presente. Houve decerto erros e falhas, insuficiências e sobreposições, rivalidades excessivas e más condutas – mas isso é da experiência do dia-a-dia, que aos responsáveis superiores compete estudar e remediar para o futuro. E a urgência da intervenção ou da resposta no tempo certo era já tão grande como será hoje. Apenas os meios serão diferentes.

Ora, desde 1974 que existe um órgão intitulado Conselho de Chefes de Estado Maior (que reúne os chefes dos três Ramos e o CEMGFA). Mexendo porventura nas competências deste órgão e nas dos quatro respectivos chefes, adquiridas por consenso naquele mesmo órgão (equivalente ao Joint Chiefs of Staff norte-americano), não seria possível aperfeiçoar o dispositivo legal existente no sentido de obter porventura uma maior eficiência e operacionalidade? Ou seja: de acordo com orientação já seguida em vários países e sob sugestão fundamentada pelo governo, proceder-se a um reajustamento desta arquitectura por consenso militar interno, tendo em conta a longa experiência adquirida e as determinantes de acções futuras, em vez de uma imposição forçada por via de determinação governamental, ainda que constante em programa de governo sufragado eleitoralmente ou obtida por uma maioria parlamentar.

De facto, segundo o que tem transparecido para a opinião pública, o actual governo terá decidido, no seu próprio âmbito, os termos da reforma a realizar e criou para isso as necessárias condições político-partidárias de viabilização legal. Estar-se-á, então, a dar mais um passo no sentido de uma maior “governamentalização” da incontornável submissão constitucional das Forças Armadas ao poder político democrático. De entre outros casos já porventura ocorridos neste mesmo sentido, recordamos a infeliz e nefasta metodologia de escolha dos chefes de Estado-Maior dos Ramos que há talvez já mais de uma década passou a ser discricionária por parte do ministro da Defesa, quando antes existia a modalidade – bem mais concordante com o espírito e a natureza daquelas altas funções militares – de o Conselho Superior do Ramo em causa apresentar três nomes de oficiais generais em condições de exercer o cargo, de entre os quais o Governo escolheria o seu eleito.

Este tipo de autonomia e de integração coordenada de motu proprio da acção dos vários Ramos é mais condizente com a cultura socioprofissional diferenciada do Exército, da Marinha e da Força Aérea.

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