Até onde vai a UE para proteger o Estado de direito?

Na negociação do orçamento plurianual da UE, “o Estado de direito tornou-se no elefante na sala”. O Parlamento Europeu aprovou no ano passado uma proposta de um “semestre europeu” para o Estado de Direito, que entretanto não avançou. O que mais pode a UE fazer para proteger o Estado de direito?

Foto
Reuters/POOL

“A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos humanos, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias”. Talvez não as saiba de cor, mas estas palavras reflectem os chamados valores europeus, plasmados no artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE), assinado em 1992 em Maastricht. Olhando para os últimos anos, não será difícil um cidadão europeu perguntar-se: terá a UE as ferramentas necessárias para proteger de facto estes valores?

“O que nós assistimos em alguns países da UE é exactamente o não respeito pelo Estado de direito, e estou a pensar particularmente na Polónia e na Hungria”, alerta a eurodeputada socialista Margarida Marques. Nestes casos, descreve, já foi emitido um conjunto de alertas e accionados os mecanismos existentes - como os procedimentos ao abrigo do artigo 7.º do TUE - “para que estes dois países possam respeitar o Estado de direito no que diz respeito à liberdade de imprensa, em relação aos direitos fundamentais, à independência dos tribunais. Esses países têm sido alertados para o não-cumprimento e para os riscos de não respeito do Estado de direito”.

Já a eurodeputada do Bloco de Esquerda Marisa Matias nota que não apenas as regras não estão a ser cumpridas, como “estes países estão a ter uma influência brutal nas políticas europeias”. “Se pensarmos na questão do Pacto para as Migrações, vemos lá a influência do grupo de Visegrado, a influência da Hungria”, recorda. Mas também na discussão sobre o fundo de recuperação e resiliência diz ter sido possível perceber “como é tão difícil vincular o cumprimento das normas relativas à manutenção do Estado de direito às políticas europeias mais generalizadas”.

No ano passado, a condicionalidade ao Estado de direito tornou-se um elemento decisivo nas negociações do pacote legislativo do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) 2021-2027 e o Next Generation EU, o mecanismo de recuperação e resiliência para responder à crise pandémica. Trata-se de um mecanismo que suspende o acesso aos fundos quando identificados casos de fraude ou corrupção. “É da protecção do orçamento da UE que se trata”, sublinha a eurodeputada socialista Margarida Marques. “Ou seja, é ter a certeza de que o dinheiro dos cidadãos europeus não é usado contra os valores europeus, mas é usado para promover os valores europeus.”

O chamado regime geral de condicionalidade para a protecção do orçamento da União Europeia vinha sendo negociado há mais tempo, precisando apenas de maioria qualificada para ser aprovado pelo Conselho, mas aquando da negociação do orçamento plurianual “o Estado de direito tornou-se o elefante na sala”, diz Margarida Marques. Polónia e Hungria fincaram o pé, afirmando que não deixariam passar o orçamento plurianual (que precisa de unanimidade). O mecanismo acabou por ser aprovado, sem os votos dos dois países, já perto do fim da presidência alemã do Conselho da União Europeia.

O mecanismo deverá agora ser accionado apenas depois de uma decisão do Tribunal de Justiça da UE sobre os processos interpostos pela Polónia e a Hungria contra estas regras, que o social-democrata Paulo Rangel acredita que não vingarão. Esta precaução da Comissão Europeia, da qual o Parlamento Europeu discorda, já levou o hemiciclo a ameaçar o executivo comunitário de que também poderá recorrer à Justiça se a Comissão continuar a atrasar a aplicação do mecanismo que condiciona o acesso aos fundos ao respeito pelo Estado de direito. 

Esta cedência da Comissão Europeia é vista como um sinal negativo por Marisa Matias. “Se o fundo avançou com um ponto desta natureza em stand by, é porque é dispensável para a execução do fundo”, lamenta.

Uma questão decisiva

“A questão do Estado de direito é uma questão decisiva na União Europeia”, assevera por seu lado a socialista Margarida Marques, vice-presidente da comissão dos Orçamentos do Parlamento Europeu. “A UE é um espaço de liberdade, de democracia, de justiça, de estado de direito.” No processo de adesão à UE, aliás, todos os Estados-membros devem cumprir os Critérios de Copenhaga, respeitando princípios de democracia, liberdade e Estado de direito. Em 2007, foi mesmo criado um mecanismo de cooperação e verificação especificamente para aferir o desempenho da Bulgária e da Roménia em matéria de Estado de direito, aquando da sua adesão à UE, considerando-se que ainda tinham lacunas nesta matéria. 

“E quando passam a ser Estados-membros da União Europeia, não podem esquecer essa obrigação”, reforça a eurodeputada. 

Não tem sido bem assim. Além da Hungria e da Polónia, é possível identificar vários outros exemplos. No primeiro relatório anual sobre o Estado de direito na UE, apresentado pela Comissão Europeia em Setembro do ano passado, lê-se que também em países como a Bulgária, Croácia, Eslováquia e Roménia “a resiliência das normas que salvaguardam o Estado de direito está a ser testada” pelo poder político e as “falhas estão a tornar-se evidentes”. O relatório debruçava-se sobre quatro pilares do Estado de direito: o sistema de justiça, o quadro de luta contra a corrupção, o pluralismo dos meios de comunicação social e ainda outras questões institucionais relacionadas com o equilíbrio de poderes. 

Para Marisa Matias, os instrumentos existentes “não estão a ser eficazes”. As regras existentes, como os procedimentos ao abrigo do artigo 7.º, “são bons mecanismos”, mas que “obviamente não estão a ser cumpridos”, havendo o que a eurodeputada considera ser “um tratamento no mínimo muito dúbio destas questões”. E como é que isto se resolve? “É muito evidente que a Comissão Europeia, o Conselho e os governos estão muito confortáveis com o facto de estes mecanismos serem aprovados apenas no papel e não terem nenhuma tradução prática. Isso obviamente é a descredibilização total dos próprios mecanismos.”

O eurodeputado do CDS Nuno Melo considera que este mecanismo é o equivalente a dar “aspirinas em cima de um problema que precisa de antibióticos”, tratando-se de uma questão complexa que não se resolve apenas de forma casuística, aplicada apenas em função da gestão dos fundos comunitários. Nota, contudo, que “é muito difícil encontrar uma fórmula que torne evidente que o propósito não é político-partidário”, sublinhando a importância de trabalhar para encontrar “mecanismos transparentes e eficazes, independentemente dos partidos e dos países”.

Um “semestre europeu” para o Estado de direito?

Paulo Rangel deposita as esperanças num mecanismo geral proposto pela comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (LIBE) e aprovado no ano passado pelo Parlamento Europeu: um mecanismo da UE para a democracia, o Estado de direito e os direitos fundamentais, uma espécie de “semestre europeu” para o Estado de direito.

Tal como o semestre europeu avalia os índices macroeconómicos de cada Estado, descreve o social-democrata, a ideia é “fazer um semestre europeu para o Estado de direito e para a democracia, isto é, uma avaliação de vários itens em cada Estado”. Tratar-se-ia de um mecanismo geral, que avalia todos os Estados-membros, e esta transversalidade é importante, já que Paulo Rangel nota “um aspecto muito negativo no caso húngaro e polaco, por mais justos que sejam os processos, e são, que é uma espécie de demonização daqueles países e daquelas populações”.

Este mecanismo geral, queixa-se o social-democrata, ainda “não avançou porque o Conselho não quer que avance”. “Isto não foi conseguido, mas o Parlamento Europeu continua a defendê-lo.”

Entretanto, a Comissão Europeia começou a publicar o já referido relatório anual sobre o Estado de direito na UE. Países como a Polónia têm sido condenados pelo Tribunal de Justiça em acções de infracção interpostas pela Comissão. Nos procedimentos accionados ao abrigo do artigo 7.º, lamenta o eurodeputado, “está provado que é fácil criar um impasse”, como se viu nos casos da Polónia e da Hungria.

“Estamos perante uma manta de retalhos”, resume Paulo Rangel. “Aquele mecanismo geral que o Parlamento queria era talvez mais asseado, no sentido de tornar tudo mais simples. As pessoas percebem bem o conceito de semestre europeu. É uma avaliação que tem em alguns aspectos um valor vinculativo, noutros só tem valor de recomendação. Mas também faz uma pressão enorme porque havendo recomendações e não sendo cumpridas, a imprensa está atenta, a sociedade civil está atenta.”

“Era bom nós sairmos da óptica da manta de retalhos e irmos para o tal mecanismo geral. Estou muito desejoso de que isto possa acontecer. Mas é preciso que os Estados queiram.”

Sugerir correcção
Ler 2 comentários