Portugal e a defesa do Estado de direito na União Europeia

Portugal entende que a adesão aos valores da UE é condição sine qua non para ser dela membro. Esta é a posição política de Portugal e nenhum jogo de sombras a perturbará.

A manchete do PÚBLICO de domingo passado era muito inquietante: “Portugal criticou no Conselho da UE defesa do Estado de direito”. Como assim: então o país que sempre defendeu publicamente que a União Europeia era, antes do mais, uma comunidade de valores, e que respeitá-los era uma condição necessária para pertencer-lhe, criticava à porta fechada o mecanismo de defesa desse valor fundamental que é o Estado de direito, isto é, a liberdade de imprensa, a independência dos tribunais ou os direitos da Oposição?

Lendo-se a notícia, percebia-se que eram dois os fundamentos de tão grave acusação: a entrevista de um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, que afirmava que vários países tinham “jogado do [seu] lado” e, entre eles, citava o nosso; e um resumo feito por diplomatas alemãs de uma reunião do Conselho de Assuntos Gerais, havida no dia 12 de novembro de 2018, no qual a nossa secretária de Estado dos Assuntos Europeus teria feito uma apreciação “muito crítica” da proposta de mecanismo de condicionalidade apresentada, em maio desse ano, pela Comissão Europeia, para ligar a receção de fundos europeus ao cumprimento do Estado de direito. Como é possível retirar destas duas “fontes” as graves acusações ao Governo que o jornal ecoa, como a duplicidade de discurso, a descoordenação com a Assembleia da República e o Parlamento Europeu, a cumplicidade com a Hungria e a Polónia, a recusa da transparência e a indiferença pelo Estado de direito?

É que as palavras do ex-ministro polaco só a ele podem responsabilizar. E a intervenção da secretária de Estado dirigiu-se, como a de vários outros dos presentes, a melhorar a proposta da Comissão, tornando-a mais sólida, mais segura, menos suscetível de enviesamentos e debilidades. Esta é mesmo a maneira de trabalhar da União Europeia: reunirmos as vezes que forem necessárias, avaliarmos com cuidado as informações, discutirmos com franqueza e ir construindo assim os consensos sobre que se baseia o geral das nossas decisões – e por isso elas são tão fortes. Entre a proposta inicial da Comissão, apresentada em maio de 2018, e a decisão do Conselho Europeu, de julho de 2020, decorreu um longo processo de preparação e negociação, e foi isso que permitiu que aquela decisão fosse tomada por todos os Estados-membros. E, ao contrário do que as fontes terão dito ao jornalista Paulo Pena, Portugal participou com intervenções de fundo nesse processo.

Vou dar um único exemplo, mas esclarecedor. Subscrevemos, em 11 de abril de 2019, com mais oito países, um documento que sumaria as nossas propostas concretas para melhorar o regulamento então em discussão. Quais são, além de Portugal, esses países? Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Eslovénia, França, Luxemburgo, Países Baixos e Suécia. Eis os nossos companheiros de jornada. E o que dizem as duas primeiras frases do documento? “Reiteramos o nosso apoio à proposta da Comissão e, portanto, acreditamos que é da maior importância estabelecer um instrumento legalmente sólido e efetivo. Nessa perspetiva, acreditamos que a proposta da Comissão pode ser melhorada e ajustada em certos aspetos, incluindo alguns mais técnicos, que foram levantados pelo Serviço Jurídico do Conselho e o Tribunal Europeu de Contas”. Será isto, caros leitores, criticar a defesa do Estado de direito?

Os factos, esses, são os seguintes.

1. Portugal entende que a adesão aos valores da UE, tal como estabelecidos no artigo 2.º do Tratado de Lisboa, e entre eles o respeito pelo Estado de direito, são a condição sine qua non para ser dela membro. Tem, aliás, nessa matéria, uma posição clara e radical: o seu incumprimento não pode ser penalizado apenas ou sobretudo por via da redução dos fundos atribuídos ao Estado que incumpra; os valores não podem ser trocados por dinheiro.

2. Em consequência, Portugal não só tem participado em todo o processo relativo à aplicação do artigo 7.º como apoia, desde a primeira hora, a iniciativa de uma revisão anual sistemática do Estado de direito em todos os países da UE. A publicação do relatório da Comissão foi a primeira concretização, seguida da análise aprofundada da situação em cinco Estados-membros, escolhidos por ordem alfabética. A presidência portuguesa já se comprometeu com a condução da análise ao segundo grupo de cinco países.

3. Portugal contribuiu ativa e positivamente para o longo processo de aprovação do orçamento plurianual da UE e do novo instrumento de recuperação pós-covid. Fê-lo defendendo a política de coesão, designadamente através da Cimeira de Beja dos Amigos da Coesão; fê-lo através da defesa de novos recursos de apoio ao relançamento económico, com a dimensão necessária e uma parte muito importante de subsídios; e fê-lo através do diálogo com a Comissão e os Estados-membros, para garantir o consenso indispensável à aprovação. Foi nesse quadro que o primeiro-ministro português recebeu os seus colegas de Espanha e Itália e visitou os seus colegas dos Países Baixos e da Hungria: para fazer pontes, para ajudar a construir o consenso sem o qual nada seria possível.

4. Portugal revê-se plenamente no mecanismo de condicionalidade inscrito na decisão do Conselho Europeu de julho passado, que permitiu a aprovação do novo Quadro Financeiro Plurianual (QFP) e do programa Nova Geração, isto é, dos 1,8 biliões de euros de estímulo à recuperação económica e social da Europa. Mais uma vez, contribuímos para o desenho desse mecanismo que associa as questões financeiras e orçamentais e o respeito pelo Estado de direito e, designadamente, para o seu “travão de emergência”.

5. Portugal apoiou sempre os esforços da presidência alemã para conseguir o acordo com o Parlamento Europeu; e apoia a cem por cento o teor desse acordo interinstitucional. Por isso, criticámos e continuamos a criticar o veto imposto pela Hungria e a Polónia à aprovação do regulamento do QFP e da decisão sobre novos recursos próprios; e estamos ao lado da Alemanha nas suas iniciativas para superar tal veto.

Isto, que se diz publicamente, diz-se privadamente. Isto, que se diz na Assembleia da República, diz-se no Parlamento Europeu. Isto, que se diz no Conselho Europeu, diz-se nas competentes formações do Conselho. Esta é a posição política de Portugal e nenhum jogo de sombras a perturbará.

Que ninguém tenha dúvidas: há quem queira impedir o escrutínio das derivas autoritárias que germinam na Europa; e há quem queira impedir esse passo de gigante na construção europeia que será o programa de recuperação pan-europeu, financiado por uma emissão conjunta de dívida, distribuído por subsídios além de empréstimos e pago com novos recursos próprios. São posições opostas, mas simétricas. Se a nossa imprensa lhes fosse menos vulnerável, os interesses de todos quantos querem fazer avançar a Europa democrática e próspera, na linha da frente dos quais está Portugal, ficariam mais bem defendidos.

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