Carta Aberta – Quanto nos custa um aeroporto no centro de Lisboa?

Tendo em conta a recentemente anunciada avaliação ambiental estratégica da localização do Aeroporto de Lisboa e da sua hipotética expansão ou relocalização, solicitamos que o XXII Governo da República Portuguesa se digne a incluir nessa avaliação, a realizar por entidade pública independente e cientificamente credível, os legítimos direitos da população afectada.

Exmo. Senhor Primeiro-Ministro Dr. António Costa,
Exmo. Senhor Ministro das Infra-estruturas e da Habitação Dr. Pedro Nuno Santos,
Exmo. Senhor Ministro do Ambiente e da Acção Climática Eng. João Pedro Matos Fernandes,

Nós, as associações e movimentos civis abaixo-assinados, activos e intervenientes em Lisboa, estamos juntos por uma cidade socialmente justa e inclusiva, próspera e equilibrada, ambientalmente sã, dedicada aos seus habitantes e aberta aos seus visitantes. Consideramos que a intervenção cívica e a participação cidadã são fundamentais nos processos políticos relacionados com este desígnio, os quais só assim se tornam transparentes e colaborativos. 

Reconhecidamente, Lisboa é uma cidade em que o desenvolvimento socioeconómico, a qualidade ambiental e o bem-estar dos seus habitantes têm sido fortemente condicionados pelo aeroporto da Portela, actualmente denominado Humberto Delgado. Trata-se de um aeroporto internacional de grandes dimensões, um dos 20 maiores da Europa, com características de hub para voos intercontinentais, localizado no interior da cidade, nas imediações de bairros residenciais, zonas de lazer e desporto e de estruturas críticas como hospitais, escolas e universidades. No ano anterior ao impacto (temporário) da pandemia de covid-19 sobre o tráfego aéreo, teve cerca de 230.000 movimentos aéreos, movimentando mais de 30 milhões de passageiros – um acréscimo de 200% em relação ao ano 2004 –, grande parte em turismo. 

Esta situação prejudica gravemente mais de 250.000 cidadãos em Lisboa e nos concelhos limítrofes (dados da Agência Europeia do Ambiente publicados em 2020), expostos a níveis de ruído muito acima dos limites máximos legalmente admissíveis em zonas sensíveis – incluindo durante a noite –, ultrapassando em muito os valores recomendados pela Organização Mundial da Saúde, revestindo-se a operação actual de óbvia ilegalidade. Os efeitos do ruído excessivo sobre a saúde humana incluem, para além da redução do bem-estar e da qualidade do sono, um aumento das doenças cardio- e cerebrovasculares, de visitas e internamentos hospitalares adicionais, e risco acrescido de mortalidade. Prejudica ainda nas crianças a capacidade de aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo. Na proximidade do aeroporto, os cidadãos são ainda afectados por elevados níveis de poluentes provenientes dos aviões, tais como óxidos de azoto (NOx), partículas ultrafinas, monóxido de carbono (CO) e compostos orgânicos voláteis, que fazem aumentar a ocorrência e a gravidade de doenças respiratórias como a asma e a doença pulmonar obstrutiva crónica, podendo ainda provocar uma maior incidência e susceptibilidade a formas agressivas de covid-19. Além disso, o risco de acidente aéreo em zonas densamente povoadas, embora estatisticamente pouco provável, não pode ser ignorado, pois teria consequências devastadoras. Estamos, assim, perante uma situação insustentável em relação à saúde humana e à qualidade de vida dos cidadãos.

Em toda a Europa, apenas o maior aeroporto existente, o de Heathrow, nas proximidades de Londres, se pode comparar ao Humberto Delgado no número de pessoas afectadas pelo ruído. Contudo, dista 25 km do centro da cidade e não afecta com tanta intensidade estruturas críticas como o de Lisboa. Os efeitos sobre a saúde destas infra-estruturas também têm custos económicos enormes que, habitualmente, recaem sobre o erário público. Um estudo feito para a Câmara de Londres avaliou o prejuízo acrescido para a saúde pública da expansão da operação aeroportuária de Heathrow em 20 a 25 mil milhões de libras. Os restantes aeroportos no Continente Europeu que estavam incrustados em zonas urbanas densas produzindo o mesmo grau de afectação (incluindo o de Tegel – que servia Berlim e acaba de ser encerrado –, Munique, Oslo e Atenas) foram relocalizados para áreas com muito mais fraca densidade populacional, onde o risco para a saúde e segurança dos cidadãos foi reduzido. Em todos estes locais a atractividade das cidades não baixou e os custos para a saúde pública evitados com estas relocalizações permitiram mitigar o investimento nelas realizado.

Para além destes problemas, Lisboa vinha-se a debater até ao começo da pandemia com uma elevadíssima carga turística. O Aeroporto Humberto Delgado, devido ao crescimento exponencial da sua actividade até ao início de 2020, está intimamente ligado a um modelo de desenvolvimento da cidade assente no turismo de massas que capturou o espaço físico da cidade e o seu tecido económico, deteriorando a qualidade de vida dos cidadãos e empurrando os seus habitantes para a periferia. Reconhecemos a importância e o interesse económico do turismo para a cidade, mas entendemos que o seu desenvolvimento deve ser planeado e não conjuntural, obedecendo a uma visão sustentável e integrada, de longo prazo. Uma carga turística desregrada e excessiva, associada à exploração intensiva e não ponderada do território, é destruidora da coesão social da cidade, gentrificando-a e afastando os seus cidadãos. O turismo é uma actividade económica essencial para a vida da cidade que se deve desenvolver dentro dos limites que os princípios da sustentabilidade social, económica e ambiental admitem. O modelo de desenvolvimento turístico da última década em Lisboa demonstrou ser profundamente extractivista, predatório e excludente, alienando as comunidades residentes nos destinos turísticos, nomeadamente, as populações dos bairros desta cidade. Lisboa não conseguirá tornar-se um destino turístico sustentável se regressarmos, após o fim da pandemia, ao mesmo modelo de turismo de massas, em particular se o país persistir no seu isolamento ferroviário, continuando a apostar numa dependência do transporte aéreo que, para além dos seus impactos sobre as populações, é incompatível com os objectivos ambientais e justiça climática.

Assim, e tendo em conta a recentemente anunciada avaliação ambiental estratégica da localização do Aeroporto de Lisboa e da sua hipotética expansão ou relocalização, solicitamos que o XXII Governo da República Portuguesa, representado por V. Exas., se digne a incluir nessa avaliação, a realizar por entidade pública independente e cientificamente credível, os legítimos direitos da população afectada, tanto pela localização actual como por outras a considerar. Assim, devem ser expressamente incluídos como fundamentos, na fase de definição de âmbito, dessa avaliação:

1. Os impactos e custos da operação, actual e futura, do Aeroporto Humberto Delgado, ou das alternativas consideradas, sobre a população afectada no tocante:

a.  à sua qualidade de vida, durante os horários de trabalho, estudo e descanso;
b.  à sua saúde, nomeadamente no que diz respeito à qualidade de sono, ao sistema cardio- e cerebrovascular, e às doenças respiratórias;
c.  à exposição ao risco de acidente aéreo;

2. Os efeitos do subjacente modelo de turismo sobre a região de Lisboa e, em particular, sobre a cidade propriamente dita, em todas as suas componentes, incluindo social, económica e habitacional, bem como o estudo da capacidade de carga turística em meio urbano.

Os signatários:

Academia Cidadã
AIL – Associação dos Inquilinos Lisbonenses
Amigos da Quinta do Ferro, Associação de Moradores e Proprietários
APPA – Associação do Património e População de Alfama
Artéria
Ateliermob
ATERRA
c.e.m – centro em movimento
Céus Azuis
Coletivo XIS
Habita! – Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade
Largo Residências
Morar em Lisboa
Plataforma Cidadã Braamcamp é de Todos
Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza
Rede para o Decrescimento
Stop Despejos
Trabalhar com os 99%
Urbanólogo
URTICA - Defesa do Ambiente e Acção Climática
Vizinhos de Arroios
Vizinhos de Penha de França
Vizinhos de São João (Penha França)
ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável

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