Voando sobre um ninho de cidadãos

Em tempos, António Costa sonhou e prometeu: Lisboa iria deixar de ter um aeroporto encravado em plena cidade e os terrenos da Portela seriam convertidos num novo parque urbano. Mas, no papel de primeiro-ministro, quais são efetivamente as preocupações de António Costa?

Apoiada numa infeliz e já familiar política de facto consumado, a ANA – Aeroportos de Portugal deu início, no passado dia 6 de janeiro, às obras de expansão do aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Apesar das consequências negativas que terão na qualidade de vida dos cidadãos de Lisboa, não foram objeto de licenciamento nem da obrigatória avaliação de impacto ambiental (AIA).

Aliás, o aeroporto na Portela constitui uma infraestrutura provisória, de acordo com a Câmara Municipal de Lisboa (CML) e com os instrumentos de ordenamento do território em vigor. Porém, no âmbito do projeto aeroportuário Portela + Montijo, a localização Portela é considerada definitiva para os próximos 40 anos, a sua capacidade expande-se para mais de 40 milhões de passageiros, e tudo isto sem qualquer avaliação dos impactes que daí resultarão.

Em tempos, António Costa sonhou e prometeu: Lisboa iria deixar de ter um aeroporto encravado em plena cidade e os terrenos da Portela seriam convertidos num novo parque urbano, reforçando a norte da cidade o “pulmão verde” de Monsanto. Enquanto presidente da CML, mostrou-se sensível ao grave problema de segurança e de saúde pública que representa o sobrevoo da população, a baixa altitude, por cerca de 600 aviões por dia (número que atingirá os 800-850 aviões/dia após as obras em curso). Enquanto autarca reconheceu que os lisboetas têm direito ao descanso noturno, ao respeito pelas leis do ruído, à habitação, à saúde e à segurança. Mas, no papel de primeiro-ministro, quais são efetivamente as preocupações de António Costa?

É incompreensível e inaceitável que o Governo promova fora do escrutínio cidadão a expansão da Portela, sem licença e sem AIA, fundada numa pretensa urgência sem plano B e na perda de receitas para a economia. No entanto, estão por quantificar as externalidades da ampliação, o que custarão nos próximos 40 ou 50 anos para a cidade, para os seus habitantes e para o ambiente. Camuflam-se, assim, os interesses inconfessáveis, a que a Vinci não é alheia, que se sobrepõem ao interesse público.

A defesa do projeto Portela + Montijo atingiu o nível do ridículo, com um secretário de Estado a reconhecer a gravidade do risco de bird strike no Montijo, mas a resolver o problema com um apelo à inteligência das aves: “os pássaros não são estúpidos e é provável que se adaptem.” É um exemplo paradigmático de como o discurso ambiental “progressista” de certos responsáveis políticos choca com a sua ação business as usual, criando e agravando a crise climática.

A Câmara Municipal de Lisboa adotou recentemente, por unanimidade, uma deliberação sobre o aeroporto da Portela. Ao aprovar medidas de monitorização do ruído e da qualidade do ar e ao prometer estudar e tornar públicos os danos que a atual localização do maior aeroporto do país provoca nos mais de 400 mil cidadãos que residem num raio de 5 km em seu redor, a CML deu um passo tímido na boa direção, mas até agora inconsequente. Após quatro meses da aprovação das medidas, nada aconteceu, a não ser o início das obras na Portela. Tem razão o presidente Fernando Medina ao considerar que o processo Portela + Montijo é uma “tragédia pública”.

O que sobra é a realpolitik que afasta os cidadãos, esvaziada da sua dimensão ambiental e negligente em relação aos compromissos internacionais a que o país aderiu, designadamente o Acordo de Paris e as suas metas de descarbonização da economia. É essa mesma realpolitik que habilita José Luís Arnaut & companhia a fazerem as negociatas do costume, enfermas de insanáveis conflitos entre interesse público e privado, perpetradas em escritórios de advogados e o mais longe possível do conhecimento público.

Ao “plantar” um aeroporto no Montijo – barato para quem o pretende construir e explorar –, a ANA/Vinci e o Governo estão obviamente a sacrificar o interesse público. Desde que todos os aeroportos do país foram concessionados à Vinci Airports em 2013, esta empresa acumulou, em Portugal, lucros superiores a mil milhões de euros, amortizando em poucos anos todo o valor que pagou ao Estado Português (1200 milhões de euros, de acordo com o contrato de concessão). Ou seja, tendo em conta que ainda restam à empresa 42 anos de concessão, é de prever que os lucros acumulados sejam largas vezes superiores ao investimento realizado, mesmo que o tráfego aéreo venha a registar baixas taxas de crescimento. O próprio ministro das Infraestruturas já reconheceu que a privatização da ANA se converteu num ruinoso negócio para o país, mas persiste-se no erro.

Nestas circunstâncias, com a concessionária a ser responsável pelo investimento em novos aeroportos, é difícil entender o argumento governamental da inexistência de meios financeiros para eliminar os elevados custos que o aeroporto de Lisboa acarreta para os cidadãos de Lisboa e Loures, transferindo esta infraestrutura, sem aumento de capacidade, para local adequado de forma planeada, respeitadora da saúde pública e dos valores naturais bem como da necessidade de manter o planeta habitável. Com uma certa hipocrisia climática, António Costa remete-nos para o filme de Milos Forman. Estarão os lisboetas condenados a viver num autêntico ninho de poluição e ruído? Estará o planeta condenado às políticas de visão curta determinadas pelos interesses privados?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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