A luz

Quando as lágrimas nos suplantam a voz, o silêncio do telefone pode ser ensurdecedor.

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"E depois há palavras que não cabem num poema, ou imagens que sejam apenas uma fotografia" Mag Rodrigues

A consciência agrava a nitidez com que vemos a vida. E a morte. Há uma altura em que passamos a ver a morte de forma mais nítida. E dói.

Nos últimos meses morreram à minha mãe, dois irmãos e um sobrinho. Fiz um diário mental de cada telefonema, de cada momento em que limpei a voz para lhe falar de forma firme e clara. Arrastei muitas vezes para o fim do dia a força que nem eu tinha para lhe poder perguntar: como estão as coisas? Às vezes não estavam bem e as lágrimas suprimiam o diálogo. Quando as lágrimas nos suplantam a voz, o silêncio do telefone pode ser ensurdecedor.

Há uns anos a minha mãe descobriu que estava doente. Era um cancro. Uma pessoa rodeia a palavra como o jogador finta o adversário em campo: anda ali em dribles muitas vezes sem sentido sabendo que tem de levar aquilo para a frente, até mesmo quando não tem hipóteses de ganhar. Felizmente ela tinha.

Nos meses que se seguiram à notícia eu tive de fazer de conta que estava sempre forte e clareava a voz no momento do telefonema e arrastava a chamada para a hora em que o céu já não estava turvo ou já nada me podia fazer mais frágil. Não havia nada de novo para dizer, mas a voz firme era qualquer coisa. Parecia-me. Ainda me parece.

Nestes dias em que soube como cada um dos meus familiares se despedia da vida, clareava a voz para o telefonema e tentava parecer o mais natural possível. Talvez tenha havido dias em que o cansaço me derrubou mas fomos até ao fim. Fomos sempre até ao fim sem que os soluços da dor da minha mãe suplantassem o nosso “até amanhã”.

Quando a minha mãe ficou doente e percebemos que uma operação a podia ajudar, eu pedi para ficar com ela. Pedi quase inconscientemente sem saber como estaria à altura do desafio. Lembro-me de passar os dias que se seguiram à decisão a ensaiar uma ideia de firmeza e pensar: e se há um momento em que as lágrimas me derrubam a voz?

Quando fomos para o hospital deu-se ali um milagre qualquer de reencontro: éramos duas amigas sentadas na cama a discutir as ideias que tínhamos da vida para além da morte. Pela primeira vez, a minha mãe pareceu-me uma adolescente curiosa que me ia perguntando: “Tu achas?” e eu, mesmo não tendo certezas nenhumas, dizia que sim. Foi um fim de tarde com a luz a entrar pelas janelas e nem uma lágrima. Só a certeza de querermos agarrar aquele momento que parecia revelador. Pelo menos nas nossas incertezas.

No dia a seguir, o dia que sempre temi, desci com a minha mãe num elevador e separei-me dela à porta da sala de operações. A voz não me falhou, e ela também não. Despedimo-nos com um “até já” sem poesia sendo que a poesia não se traduziria nunca em palavras. Era um momento que não podia caber numa fotografia ou num verso. Não há registo para momentos assim a não ser os que levaremos para sempre connosco enquanto a memória nos permitir.

Subi de novo ao quarto aonde tínhamos ensaiado uma ideia de vida continuada e ali fiquei na altura apaziguada à espera do tempo do relógio. A consciência, essa que se torna nítida com o passar dos anos, não me abandonou, mas fiquei em silêncio à espera.

Horas mais tarde, ela estava de volta e pareceu-me de novo a adolescente num embate com as questões essenciais da vida. Num momento que parecia de despedida, tive a hipótese de viver com a minha mãe um momento inédito: esse momento em que falamos de uma ideia de viagem depois do aqui termina, não sabendo nenhuma de nós se nos será dada essa hipótese.

Nestes dias recentes de luto pelos seus familiares, ela volta sempre a essa minha ideia da viagem contínua. Como se fosse um brincadeira que eu tivesse inventado para fintar os dias turvos.

Há sempre uma brecha de luz inesperada a entrar pelo estore semicerrado. E há sempre uma voz que consegue suplantar as lágrimas para perguntar se está tudo bem. Sei que sim. Somos todos capazes. E depois há palavras que não cabem num poema, ou imagens que sejam apenas uma fotografia. Há coisas só nossas que nunca serão registadas. Só na nossa memória.

Como a luz deste fim de dia.

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