A primeira fotografia que tirei à minha filha — e a última

O fotógrafo da Reuters Darrin Zammit Lupi documentou os últimos meses de vida da sua filha adolescente enquanto ela e a sua família lutavam tanto contra a pandemia do coronavírus como contra o cancro que acabou por a levar.

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Tirei a primeira fotografia da minha filha, Rebecca, momentos após o seu nascimento, a 3 de Agosto de 2005.

Pouco mais de 15 anos depois, tirei a última fotografia da minha filha momentos após a sua morte, a 3 de Janeiro de 2021.

Sou fotojornalista. Era natural que documentasse quase todos os momentos da bela vida da Becs, como a minha mulher, a Marisa, e eu a chamávamos.

Mais difícil, muito mais difícil, era documentar a sua doença e morte de uma forma rara e extremamente agressiva de cancro ósseo.

No último Outono, a Reuters publicou um ensaio fotográfico Wider Image sobre a luta da nossa família contra a doença da Becs, que se tinha tornado ainda mais impossível devido à pandemia do novo coronavírus que tinha chegado a Malta, a ilha onde vivemos. Esse ensaio terminou com um momento de esperança, depois de ela ter tido alta do hospital após meses de tratamento exaustivo.

A esperança ainda era uma coisa, algo em que eu ainda acreditava fervorosamente, optando sempre por acreditar no melhor cenário possível.

Mas, apenas dois meses após a sua alta, tivemos de levar a Becs de volta ao hospital. Foi no domingo, dia 27 de Setembro.  Nenhum de nós o sabia, mas a Becs via o nosso cão Cookie e os gatos Zippy e Zorro pela última vez, ela via o seu quarto pela última vez, ela saía de casa pela última vez — ela nunca mais regressaria.

O pessoal do bloco operatório do hospital segura em Rebecca Zammit Lupi, recém-nascida no Hospital Saint James Capua em Sliema, Malta, 3 de Agosto de 2005 REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca Zammit Lupi assiste, com a mãe Marisa Ford, a uma mensagem vídeo do actor americano David Schwimmer, da série Friends, da qual Rebecca era uma grande fã REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca recebe um presente das radiologistas Maria Elena Grech e Angelina Dimitrova após o que deveria ter sido a sua sessão final de radioterapia, a 4 de Junho de 2020 REUTERS/Darrin Zammit Lupi
O fotógrafo da Reuters Darrin Zammit Lupi ajuda a enfermeira Naomi Balzan a transferir a sua filha Rebecca do seu quarto para fazer uma ressonância magnética REUTERS/Darrin Zammit Lupi
A enfermeira Pauline Falzon prepara uma solução intravenosa de antibióticos para Rebecca Zammit Lupi, enquanto esta participa numa aula online REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca Zammit Lupi, aos 2 anos REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca lê um postal enviado pela artista local Marisa Attard, mostrando a jovem como uma super-heroína REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Silvana Zammit faz um exame, depois de Rebecca ter apresentado alguns sintomas de covid-19 REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca realiza alguns exercícios básicos de dança pela primeira vez em meses, fora do seu quarto. Rebecca era uma bailarina apaixonada pelo hip-hop e pela dança contemporânea: "Não há palavras para descrever o quanto sinto falta de dançar. Dançar era como a minha forma de comunicar sem palavras. Adorava dançar com os meus amigos e espero voltar a fazê-lo no futuro", disse Rebecca REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Enfermeiros e radiologistas levantam Rebecca Zammit Lupi após a realização de uma tomografia computorizada REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca, aos 12 anos, com o seu cão Cookie REUTERS/Darrin Zammit Lupi
4 de Junho de 2020 REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca Zammit Lupi com a mãe Marisa Ford e a enfermeira Martina Vella REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Os fisioterapeutas Zach Gatt, Jonathan Dimech e Angele Azzopardi ajudam Rebecca REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca a fazer exercícios com o fisioterapeuta Jonathan Dimech. "Sempre admirei a vontade e determinação de Rebecca em continuar. Ela era uma alma tão gentil", disse Dimech REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca a jogar no seu iPad REUTERS/Darrin Zammit Lupi
O fotógrafo da Reuters Darrin Zammit Lupi e a filha Rebecca, de 15 anos REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca Zammit Lupi segura o seu urso de peluche Snuggles enquanto dorme REUTERS/Darrin Zammit Lupi
O capelão do hospital, Mario Attard, abençoa Rebecca, enquanto esta dorme, a 3 de Junho de 2020 REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca Zammit Lupi, aos 12 anos, numa actuação no Colégio de Dança "Três" em Valletta, Malta, Um dos seus professores, Warren Bonello, escreveu num post nas redes sociais: "Ela provou ser uma guerreira, uma e outra vez, corajosa e forte, mas a vida decidiu que estaria melhor lá no jardim de Deus" REUTERS/Darrin Zammit Lupi
6 de Outubro de 2020 REUTERS/Darrin Zammit Lupi
"Honestamente, pensei que já teria a minha vida de volta. (...) Pensei que tinha acabado de vez com a quimioterapia e a radioterapia. Mas aqui estou eu a reviver aquilo por que passei ao longo deste último ano", escreveu Rebecca num post do Facebook a 10 de Outubro de 2020 REUTERS/Darrin Zammit Lupi
23 de Novembro de 2020. Rebecca dorme no seu quarto no Hospital Mater Dei, em Tal-Qroqqq, Malta REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Marisa Ford conforta Rebecca, enquanto o fisioterapeuta Jonathan Dimech massaja o pé da rapariga ,
Marisa Ford no dia em que recebeu um dramático prognóstico: a equipa médica, a 5 de Dezembro, estimou que Rebecca teria entre 4 e 8 semanas de vida REUTERS/Darrin Zammit Lupi
O fotógrafo da Reuters Darrin Zammit Lupi deita-se ao lado da filha Rebecca, na altura em coma REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Rebecca Zammit Lupi, de 15 anos, esteve alguns dias em coma antes de morrer REUTERS/Darrin Zammit Lupi,REUTERS/Darrin Zammit Lupi
As enfermeiras Naomi Balzan e Nanette Azzopardi administram analgésicos e sedativos a Rebecca pouco antes desta falecer. Esta foi a última fotografia que o fotógrafo da Reuters Darrin Zammit Lupi tirou da sua filha enquanto ela ainda estava viva - morreu 57 minutos depois REUTERS/Darrin Zammit Lupi
Marisa Ford chora. Rebecca, de 15 anos, tinha acabado de morrer, vítima de cancro REUTERS/Darrin Zammit Lupi
O caixão de Rebecca, no Crematório de Charlton Park em Andover, Reino Unido REUTERS/Darrin Zammit Lupi
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O pessoal do bloco operatório do hospital segura em Rebecca Zammit Lupi, recém-nascida no Hospital Saint James Capua em Sliema, Malta, 3 de Agosto de 2005 REUTERS/Darrin Zammit Lupi

A Becs morreu, muito pacificamente, sem quaisquer sinais de angústia, na manhã de domingo, 3 de Janeiro de 2021, às 9h20. A Mars (como eu chamo à minha mulher) e eu estávamos com ela.

No final, a sua respiração ficou cada vez mais ténue, até se tornar muito superficial, com as pausas entre inspirações a serem cada vez maiores. Depois, já não existiam.

Continuei a falar com ela, convencido de que agora podia ouvir-me e compreender-me melhor do que antes, dizendo-lhe para não ter medo. Disse-lhe que continuaria a segurar a sua mão o máximo de tempo que pudesse, mas que, agora, ela “encontraria outros para lhe pegar na mão”, e, quando sentisse que estava pronta, deveria ir com eles. Continuei a olhar para o tecto — as pessoas que morreram e depois foram reanimadas no hospital não dizem que estavam a ver tudo de cima perto do tecto? Então, a Becs estava a observar de lá? Ela estava confusa, ou sabia exactamente o que estava a acontecer e estava calma e pacífica em relação a tudo isto?

Todas as enfermeiras tinham entrado no quarto e estavam de pé à volta da sua cama num respeitoso silêncio. Não tenho a certeza se elas compreenderam o que eu estava a fazer, porque estava a sussurrar-lhe enquanto olhava para longe do seu corpo, mas eu não me importava.

Agora, em cada momento que estou a pensar nela (e são muitos esses momentos), estou desesperadamente à procura dos sinais que as pessoas disseram que iríamos encontrar, tal como estou desesperado por sonhar com ela, e ainda assim não sonho. Talvez esteja a esforçar-me demasiado, e preciso apenas de deixar as coisas acontecerem, e reconhecê-las-ei quando acontecerem.

Nos meses que antecederam a sua morte, a Becs tinha estado a jogar um jogo no seu iPhone, Sky Children of the Light. Ela queria que eu me juntasse a si, por isso actualizei o meu antigo iPhone para um modelo mais recente. Adorava o jogo e adorava jogá-lo com ela. À medida que os nossos avatares viajavam juntos, elevando-se através das nuvens e paisagens numa variedade de missões, em diferentes reinos (que acabei por descobrir simbolizarem as diferentes fases da vida, desde a infância até à morte e mais além), ela era a minha guia, a minha mentora, a minha professora. Ela (ou melhor, o seu avatar) dava-me a mão e levava-me a todo o lado, e era assim que eu queria.

Ao longo da sua vida, tentei guiá-la e ensiná-la, e agora ela estava a fazer-me o mesmo. Não sei dizer se ela estava a ver este jogo como uma espécie de alegoria da sua própria vida — mesmo que apenas a um nível subconsciente.

A única parte do jogo que ela não me mostrou foi a parte em que a sua personagem tem de morrer para poder avançar; ela disse que eu não estava “preparado para isso”. Será que ela própria sabia que ia morrer em breve? Ela certamente nunca falou sobre isso, ou perguntou sobre isso. Tínhamos decidido que não lhe contaríamos, a não ser que ela perguntasse directamente. Como é suposto dar essa notícia a um filho?

Para mim, o jogo desenvolveu-se numa metáfora do que aconteceria quando eu próprio acabasse por fazer a passagem — ela “estará lá à minha espera, para pegar e segurar na minha mão, agir como a minha guia e guardiã, levar-me aonde tenho de ir”.