Emmeline da Cunha, uma médica goesa pioneira no meio da peste de Bombaim

Emmeline da Cunha é considerada a primeira mulher médica goesa. A licenciatura em Bombaim coincidiu com o deflagrar da peste bubónica, em 1896, e foi no porto da grande cidade da Índia colonial britânica que começou a trabalhar. Partiu depois para Florença, Newcastle e Londres para se especializar em Bacteriologia e Medicina Tropical, numa breve, mas intensa, carreira. O seu percurso, cosmopolita e contraditório, permite-nos refletir sobre os cruzamentos entre género, ciência e colonialismo.

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Emmeline da Cunha entre os colegas e professores. London School of Tropical Medicine Londres, 1902 Arquivos da LSTM

O Grant Medical College, a primeira universidade de Medicina ocidental criada na Índia colonial britânica foi inaugurado em 1845. Quase 40 anos depois, em 1884, começou a aceitar mulheres, antes de várias universidades europeias o fazerem (Edimburgo, por exemplo, em 1889). A primeira a licenciar-se, em 1892, foi Freny Cama, parsi, comunidade próspera e progressista de Bombaim. Quatro anos mais tarde, são já seis as mulheres a concluir Medicina: outra parsi, Manak Turkhad; quatro britânicas e Emmeline da Cunha (1873-1972), mulher indiana de nacionalidade portuguesa por ter nascido em Pangim, criada em Bombaim por pais goeses católicos.

Durante o curso, Emmeline ganhou vários prémios universitários — Sir James Fergusson Scholarship (1890), Lady Reay Medal, Bai Hirabai Petit Medal, Scholarship of Medical Women in India Fund e, em concorrência com candidatos de ambos os sexos, o Balkrishna Sudamji Prize em Obstetrícia e Ginecologia (1893). O seu nome aparece enunciado em vários lugares como a primeira médica goesa e é provável que o tenha sido, embora as afirmações de pioneirismo corram sempre o risco de serem incertas ou mesmo incorretas.

No mesmo ano em que Emmeline e as colegas se licenciam, 1896, a doença que assolava uma favela da grande cidade indiana foi identificada como sendo peste bubónica pelo médico, também de origem goesa, Acácio Gabriel Viegas. Já tinha havido um surto na China e, até à viragem do século, contagiaria muitos lugares do mundo naquela que foi considerada a terceira pandemia de peste da história.

O enorme desenvolvimento da navegação ao longo do século XIX — dos navios a vapor à abertura do Canal do Suez em 1869 — e o aumento da circulação global de pessoas e bens fizeram com que as cidades portuárias se tornassem especialmente vulneráveis à circulação da doença. Do Porto ao Rio de Janeiro ou a Bombaim, cidade de entrada na Índia e de passagem entre a Europa e a Ásia. Emmeline da Cunha foi nomeada médica-inspetora do Porto de Bombaim, durante o início da peste, antes de partir para Itália e Inglaterra para prosseguir os seus estudos em Bacteriologia e Medicina Tropical.

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Fotografia do álbum "The Bombay plague epidemic of 1896-1897: work of the Bombay Plague Committee", 1897 Fotografia atribuída a Capt. C. Moss

Mulheres médicas indianas: diversidade e mobilidade

Várias historiadoras indianas têm estudado a entrada das mulheres nas profissões ligadas à saúde em diversas regiões da Índia — Sujata Mukherjee ou Ambalika Guha centram-se em Calcutá ou Madras, enquanto Mridula Ramanna faz de Bombaim o seu laboratório. O que a historiografia das últimas décadas tem demonstrado é que apenas quando as historiadoras, como as académicas em geral, entraram em força e globalmente nas universidades, bibliotecas, arquivos e museus — na década de 1970 — é que as mulheres passaram a ser estudadas historicamente de um modo empenhado e profundo. As mulheres também estavam nos arquivos e documentos, mas só passaram a fazer parte da história do passado quando no presente houve quem as procurasse e transformasse em objeto historiográfico.

No artigo Women Physicians as Vital Intermediaries in Colonial Bombay, Ramanna identificou as origens de todas as mulheres licenciadas no Grant Medical College entre 1892 e 1915. A maioria é parsi, e não por acaso. Os parsis, de origem iraniana e praticantes do zoroastrismo, constituíam, durante este período, uma das comunidades mais influentes de Bombaim. Com uma tradição tanto de comércio como de filantropia e intervenção pública assumiam uma identidade híbrida entre a cidade de colonizadores britânicos e de colonizados de maioria hindu. A sua cultura cosmopolita fez com que fossem várias as mulheres parsis a prosseguir carreiras académicas.

O segundo grupo mais numeroso é o das indianas cristãs, ou seja, com origem nas comunidades que em diferentes momentos da história tinham estado sob domínio português e, por isso, convertidas ao cristianismo. Assim, 31 são parsis; 17 são indianas cristãs; oito hindus, e duas judias. Muitas outras saem da Índia: para a Grã-Bretanha, metrópole colonial, ou para Filadélfia, onde, na década de 1880, já há várias mulheres estrangeiras a estudar Medicina, entre elas Anandabai Joshee.

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Anandibai Joshee (esquerda), Kei Okami e Tabat M. Islambooly, estudantes do Woman's Medical College of Pennsylvania. Joshee nasceu em 1865 numa família brâmane hindu, perto de Bombaim. Antes de partir para os EUA fez uma apresentação pública onde afirmou: “Há uma necessidade crescente de mulheres médicas hindus na Índia, e eu ofereço-me para me formar como uma”

Quem era Emmeline da Cunha?

Emelina Maria Antonieta da Cunha, ou Emmeline da Cunha, nome já inglesado como tantas vezes acontecia nas passagens entre as duas índias, a portuguesa e a britânica, era fruto do meio mais privilegiado da comunidade goesa de Bombaim, os brâmanes católicos. Eram aqueles que conjugavam o catolicismo com a casta brâmane, ou seja, os privilégios de pertencer à religião dos portugueses, governadores daqueles território indiano desde o século XVI, com os daquela que era considerada a casta mais alta do sistema indiano de desigualdade social e religiosa. Bombaim era a cidade de uma vasta comunidade cristã, quer aquela que lá estava antes de Bombaim ter passado de domínio português para britânico — como dote de casamento entre a portuguesa Catarina de Bragança e o monarca britânico Carlos II —, quer aquela formada pelos goeses, de maioria católica, mas também hindu, de diversas origens sociais e castas que no século XIX foram para Bombaim à procura de oportunidades de estudo e de trabalho.

Emmeline era filha de Ana Rita da Gama e do médico e historiador José Gerson da Cunha. Nascera em Pangim em 1873 numa das estadias longas que os pais faziam na terra natal. Prova de que o casal investiu tanto na educação das duas filhas como na do filho, é que Olívia, a outra irmã, estudou Arte em Florença depois de se graduar na Universidade de Bombaim.

A análise histórica tem identificado alguns padrões constantes na relação das mulheres com o conhecimento ou a criatividade desde o século XVI — um deles é o modo como o incentivo de pais, homens, era determinante para as filhas prosseguirem estudos superiores ou se dedicarem à escrita, às artes, à ciência, como às diversas profissões que implicavam presença no espaço público e remuneração. Parece ser o caso de Emmeline.

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Família de Emmeline da Cunha DR

Numa carta dirigida ao orientalista italiano Angelo de Gubernatis, em 1897, Gerson da Cunha escreve: [Os meus filhos] estudam todos com aproveitamento e têm-me dado, graças a Deus, muito prazer e satisfação. A minha filha mais velha vai concluir o seu curso de Medicina.” Numa outra carta enviada de Bombaim para Florença muito antes, em 1883, o pai orgulhoso referia como Emmeline, então com 9 anos, tinha feito exames e fora proposta para o “primeiro prémio da sua classe”. Uns meses depois, volta a escrever ao italiano, dizendo-lhe como a filha era também “uma pianista de instinto”, como a mãe.

Esta correspondência entre Gerson da Cunha e o indianista De Gubernatis, na secção de manuscritos da Biblioteca Nacional de Florença, foi o ponto de partida para o meu livro Outros Orientalismos: a Índia entre Florença em Bombaim (2009). Foi também neste espólio manuscrito e pessoal de dois homens, disponível numa instituição pública, que, pela primeira vez, encontrei o nome desta mulher. Encontrei a filha a seguir ao pai.

Na minha investigação em curso sobre Gerson da Cunha e a produção de conhecimento sobre a Índia, feita por indianos, na segunda metade de Oitocentos, o percurso médico de Emmeline será um capítulo e não uma nota de rodapé, o lugar a que ficaram remetidos tantos nomes femininos. Este caso é exemplificativo. Para conseguir encontrar traços históricos de mulheres é necessário escrutinar arquivos masculinos de um modo criativo e empenhado.

Florença, primeira paragem na Europa

Foram três as cidades europeias onde Emmeline prosseguiu os seus estudos. Florença primeiro, depois Newcastle e finalmente Londres. Os arquivos históricos universitários são determinantes para este tipo de pesquisa, mais ainda para os casos de mulheres que, concluídos os estudos, deixaram poucos ou nenhuns registos em documentação pública. Se a ida de indianos para prosseguir estudos em Inglaterra era comum — os itinerários imperiais a ditarem o caminho —, a ida para Florença só se explica devido a uma conjuntura muito específica, indissociável das relações intelectuais e de amizade que o seu pai, Gerson da Cunha, tinha com a cidade italiana — em 1878 passara uma longa temporada em Itália, para apresentar uma conferência no Congresso Internacional de Orientalistas de Florença e para fazer investigação nos arquivos históricos do Vaticano, em Roma.

Quando é que Emmeline partiu para a Europa? Em 1896, Gerson da Cunha escreve uma carta à mulher do presidente da Câmara de Florença a dizer que a família passaria por Florença a caminho de Londres. Mas esta também é a data em que Emmeline teria sido nomeada médica inspetora do Porto de Bombaim. O surgimento da peste bubónica teria alterado os planos familiares? O jornal The Times of India, diz que em 1898 Emmeline era ainda “lady plague inspection doctor” e só em 1899 é possível confirmar que as três mulheres da família estão a viver em Florença.

A tese final de Emmeline da Cunha, escrita em italiano e intitulada Sulla esistenza di microrganismi patogeni nella bocca e nel naso d'individui sani, encontra-se disponível online, no âmbito de um projeto recente de inventariação de todas as teses de mulheres que estudaram na universidade de Florença desde 1875, data em que as mulheres foram autorizadas a frequentar as universidades italianas, até à Segunda Guerra Mundial, altura em que os seus números se multiplicam.

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Primeira página da tese final de Emmeline da Cunha, 1899

A encabeçar as cartas deste período estão duas moradas: Via dei Banchi, n. 4 e a Pensione Pendini, na Via Strozzi. O pai ficara a trabalhar em Bombaim e só regressa para apresentar uma conferência no Congresso Internacional de Orientalistas de Roma em 1899. As três mulheres da família aparecem inscritas no congresso como participantes ouvintes, como atestam as atas do evento. Não eram as únicas — o periódico I’llustrazione Italiana chama a Angelo de Gubernatis, organizador do congresso e amigo da família Cunha, o “feministe da Vigília” por ter convidado tantas representantes do “sexo gentil”.

Após o congresso, elas ficaram em Itália e ele regressa à Índia, com a promessa de muito em breve se reunir com a família em Florença. Mas a morte por peste bubónica aos 56 anos apanha-o ainda em Bombaim, em 1900. Ana Rita, recém-viúva, escreveu numa carta a Gubernatis: “Tivesse o meu marido cumprido a promessa que lhe fez a si e a mim de regressar a Roma seis meses depois, não teria certamente morrido, e estaríamos todos aqui felizes a viver na bela Itália, essa terra divina, rodeados de amigos bons e amáveis como você, meu caro Conde, e a sua excelente família.”

Medicina na metrópole colonial

O que é que Emmeline fez entre a conclusão da especialidade em bacteriologia em Florença e a inscrição na Universidade de Newcastle, no Norte de Inglaterra, em 1901? Voltou à Índia ou permaneceu na Europa? Sabe-se que no primeiro trimestre do calendário académico de 1901 estava matriculada no College of Medicine de Newcastle. Um ano depois faria os exames finais do bachelor of Hygiene e, a 27 de setembro de 1902, obtinha a sua licenciatura. Um dos seus trabalhos escritos mereceu o Prémio Luke Armstrong Scholar em Patologia Comparada.

O facto de ter obtido o grau académico apenas num ano era comum para quem, como no seu caso, tinha completado estudos prévios. Este percurso era especialmente frequente em sujeitos colonizados que começavam por estudar nas várias instituições de Medicina ocidental que o império britânico criara nos territórios dominados para depois concluir — e legitimar — a sua aprendizagem na própria metrópole.

Estes itinerários coloniais de validação científica também se deram no caso português, em que muitos jovens preferiam ir para Lisboa ou para Coimbra (ou Bombaim) a estudar na Escola Médica de Goa, que, como afirmou Cristiana Bastos, lhes subalternizava os percursos profissionais e os concursos públicos.

Tudo indica que, depois de um ano no Norte de Inglaterra, Emmeline tenha ido logo para Londres. “Miss Emmeline Da Cunha” — é assim que aparece no arquivo histórico da London School of Tropical Medicine, onde estudou no primeiro trimestre de 1902. Uma fotografia de grupo marca a sua passagem pela prestigiada instituição de Medicina tropical. Encontrar Emmeline entre os outros estudantes e professores é fácil. É a única mulher e a única pessoa de origem não europeia.

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Emmeline da Cunha entre os colegas e professores, na London School of Tropical Medicine, Londres, 1902

Duas outras referências escritas associam-na à universidade, uma privada e uma pública. Uma morada em Manchester, provavelmente porque o seu irmão Gilberto aí estudava Medicina, e outra em Londres, surgem no seu registo universitário.

A sua passagem por Londres deixa uma marca mais pública — participa num estudo científico e, ao lado de 13 colegas, o seu nome surge a assinar um artigo numa das mais prestigiadas publicações médicas da época, o British Medical Journal. O texto, de 22 de novembro de 1902, descrevia a identificação do parasita protozoário — tripanossoma — que causava a doença do sono no ser humano. Foi polémico e deu azo a vários intercâmbios de artigos nas publicações seguintes. A denominada “doença do sono”, que afetava (e continua a afetar) de forma mortífera milhares de africanos, era então objeto de investigação científica em vários lugares do mundo, também em Portugal.

Em Londres como em Lisboa, a palavra “tropical” era indissociável das ciências coloniais que se desenvolviam a par e passo com os interesses de domínio europeu em África como na Ásia. David Arnold é um dos historiadores que se dedicam ao cruzamento entre medicina e império na Índia.

Bombaim como um laboratório científico

Os serviços de Emmelinne como médica inspetora no Porto de Bombaim “mereceram altos louvores no relatório do chefe do serviço sanitário do porto em 1897, e especiais agradecimentos do governo da cidade em 1897 e 1898, e do presidente da Plague Committee, em 1897”, afirma um livro sobre a família Cunha.

A doença era consequência da bactéria que tinha sido identificada dois anos antes, em 1894, pelo médico bacteriologista do Instituto Pasteur Alexandre Yersin. Foi em Hong Kong que Yersin deu nome à bactéria transmitida através de pulgas, que — soube-se então — tinha estado na origem de várias epidemias mortíferas ao longo da história. A diferença agora, em finais de Oitocentos, era que a investigação médica em países distintos tinha já condições para ambicionar uma vacina.

Foram diversas as comissões de cientistas que de Florença, como da Alemanha, Rússia e Egito viajaram para Bombaim para estudar a peste in loco, numa prova de como os circuitos transnacionais da medicina nem sempre coincidiam com os circuitos das relações coloniais. Indissociáveis dos desafios estritamente médicos do Bombay Plague Committee eram os sociais e económicos. As medidas sanitárias impostas pelo Governo britânico levaram a várias formas de revolta por parte das populações nativas. Levantamentos fotográficos feitos em 1896-1897, sobretudo do capitão britânico C. Moss e do indiano Shivshanker Narayen testemunham quer o trabalho de visitas à população pelos responsáveis de saúde pública, quer as fomes que resultaram da praga, naquela que é considerada a primeira crise biopolítica.

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Uma das 135 fotografias de um álbum "Plague Visitation Bombay 1896-97". A maior parte das imagens foi tirada pelo capitão C. Moss, do The Gloucestershire Regiment ap. C. Moss/National Army Museum, NAM. 1992-08-74-15

A comissão florentina, liderada por Alessandro Lustig, director do Laboratório de Patologia Geral do Instituto de Estudos Superiores de Florença, chega mesmo a instalar um laboratório em Bombaim, no verão de 1897. Objetivo: poder “aplicar na prática as [suas] observações de laboratório” vacinando a população com o soro antibubónico concebido em Florença.

Pouco depois, seriam publicados os artigos sobre os ensaios clínicos efetuados entre a população indiana, com resultados menos positivos do que se desejaria. Como afirmou Gyan Prakash, as “colónias eram laboratórios de modernidade demasiado extensos e com pouco investimento”. Estaria a ida de Emmeline para estudar Bacteriologia em Florença, em 1899, em detrimento de Inglaterra, lugar mais óbvio para quem estudava na Índia britânica, relacionada também com os contactos profissionais feitos em Bombaim no contexto do combate à peste bubónica?

Entre vida familiar e a carreira

São inúmeros os casos de mulheres nos séculos XIX e XX em que casamento e maternidade significam o fim do exercício da profissão ou dos estudos. Foi também o caso de Emmeline da Cunha. A sua biografia foi cortada ao meio — antes do casamento e depois do casamento, a maior parte da sua longa vida (morreu em 1972, na véspera de fazer 100 anos).

A primeira parte da biografia corresponde ao usufruto de todas as possibilidades de formação científica a que era possível aceder e uma transgressão das expectativas em relação à maior parte das mulheres suas contemporâneas. Mesmo tendo em conta que alguns contextos geográficos distintos significam uma maior abertura a percursos de conhecimento e criatividade femininos — maior em Bombaim do que em Pangim, maior em Londres do que em Lisboa.

A segunda parte da biografia implica o desaparecimento das fontes escritas. Isto, porque os afetos e as experiências de vida privada tendem a não deixar documentos escritos e também por isso fazer a história das mulheres obriga a abordagens mais criativas e esforçadas dos arquivos. O casamento, em Londres, em 1904, aos 31 anos, com um médico goês de formação britânica, foi a fronteira entre as duas partes da sua biografia. De um capítulo de livro a uma nota de rodapé. A sua educação tinha sido tão ou mais completa e cosmopolita do que a do marido, Francisco Xavier Santana da Costa, mas o regresso à Índia logo em 1904 determinou um caminho distinto para um e para outro — o género a marcar os percursos profissionais.

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Casa caiada contra a peste, Bombaim Wellcome Collection

Começam por se instalar em Goa, mais precisamente em Margão, onde ele exerce como médico e diretor de um hospício. De Emmeline já não há notícias. Em 1908 partem para Bangalore, cidade da Índia britânica onde Santana da Costa se tornou médico e director do Hospital de Santa Marta. Tiveram seis filhos, três raparigas e três rapazes. De médica-cientista a mulher de médico e mãe. O modo como as relações pessoais se entrelaçam com os percursos profissionais é muito mais determinante para as mulheres do que para os homens. As dimensões subjetivas e invisíveis — das negociações familiares, dos contextos domésticos e afetivos, dos pais e maridos — afetaram as escolhas públicas e profissionais femininas. Vimos como o pai de Emmeline foi decisivo para a sua breve carreira académica. Terá o marido um papel igualmente preponderante na sua decisão de não ter prosseguido um itinerário na medicina?

Bombaim goesa: entre dois impérios

E o espaço geográfico? Viver em Goa ou em Bombaim, cidade grande e cosmopolita, significaria possibilidades diferentes para as mulheres goesas de Oitocentos? Seria a Índia colonial britânica uma oportunidade adicional para a emancipação intelectual das mulheres para lá da esfera privada? Penso que sim e assim o tentei demonstrar num artigo sobre as mulheres goesas que publicaram durante este período. A sofisticada cultura de imprensa que se vivia na Goa do século XIX — estudada no livro de Rochelle Pinto Between Empires, Print and Politics in Goa e tema do projeto Pensando Goa, da Universidade de São Paulo, do qual faço parte — era sobretudo uma cultura masculina, em que os saberes das mulheres se manifestavam dentro de casa e os dos homens nas muitas publicações impressas em tipografias de Pangim, Margão ou Bastorá.

Emmeline personifica as contradições vividas por tantas outras mulheres durante este período histórico, tanto na Índia como na Europa — usufruiu de todas as possibilidades académicas que na transição do século se começavam a abrir ao sexo feminino e o seu talento e inteligência ficaram documentados em registos escritos. Mas o prenúncio prometedor sucumbiu à força da norma.

A Índia britânica tinha ainda outra vantagem para os goeses e esta afetava ambos os géneros — a possibilidade de tornarem mais ambíguo o seu estatuto de “colonizados”, categoria que lhes era inevitavelmente adscrita, fosse na Índia portuguesa, fosse em Portugal metrópole colonial. Na Índia britânica, mas sobretudo nessa cidade cosmopolita que era a Bombaim de finais do século XIX, a identidade híbrida dos goeses continha algo de emancipatório. Eram indianos de nacionalidade portuguesa e por isso não estavam sujeitos ao governo britânico como estavam os indianos da Índia britânica.

A relação de goeses com a medicina vem também invalidar oposições fáceis entre medicina ocidental europeia, por um lado, e medicina indiana aiurvédica, por outro. No contexto do império português, desde o século XVI que a medicina dita “ocidental” era parte intrínseca da cultura goesa, sobretudo daqueles convertidos à religião e à língua. Quando o pai de Emmeline escreve um ensaio histórico sobre a vida e o trabalho do judeu português Garcia de Orta em Bombaim, afirmou também como a genealogia da Medicina e Botânica quinhentistas era indissociável da história da Índia (e da sua própria formação enquanto goês).

Mas as potenciais vantagens de esta comunidade goesa viver em Bombaim — na sua identidade colonial, em geral, como na maior abertura para o género feminino — tiveram um preço. Nos interstícios e fronteiras entre contextos imperiais, os goeses de Bombaim tenderam a ficar de fora das lentes de observação das historiografias, quer britânica, quer portuguesa, mais centradas nos eixos entre as metrópoles e as colónias. Pelo contrário, é nestes lugares híbridos, de múltiplas geografias, línguas e culturas, que se encontram personagens como Emmeline da Cunha, uma mulher cosmopolita, tanto nos seus itinerários transnacionais na Medicina, como na própria identidade – mas também contraditória, sobretudo no modo como renunciou a uma carreira científica promissora para desaparecer dos traços da história.


Historiadora, ICS-ULisboa

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