As intermitências da ciência

Os bolseiros de investigação são trabalhadores no pleno sentido da palavra. Mas não têm direito a subsídios de férias nem de Natal, não usufruem do subsídio de refeição, é-lhes negado o subsídio de desemprego e escassos são os apoios de parentalidade, doença ou velhice a que têm acesso.

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Adriano Miranda

Antropólogos, arqueólogos, astrónomos, biólogos, economistas, estatísticos, filósofos, físicos, informáticos, historiadores, geólogos, linguistas, matemáticos, médicos, musicólogos, psicólogos, químicos, sociólogos. Quem decide seguir o sonho de ser cientista, escolhendo o seu futuro de entre estas e tantas outras áreas, sabe que muito provavelmente terá algo em comum com vários milhares de outros cientistas e investigadores em Portugal. Serão bolseiros de investigação.

Apesar do que o nome possa transparecer, uma bolsa de investigação não é um subsídio que visa colmatar parcas condições económicas, nem um prémio atribuído pontualmente. Os bolseiros têm de cumprir os planos de trabalho, as ordens dos seus superiores, os horários dos locais onde trabalham e a dedicação exclusiva que os impede de trabalhar para qualquer outra instituição. Os bolseiros de investigação são trabalhadores no pleno sentido da palavra. Mas não têm direito a subsídios de férias nem de Natal, não usufruem do subsídio de refeição, é-lhes negado o subsídio de desemprego e escassos são os apoios de parentalidade, doença ou velhice a que têm acesso.

Durante o último ano, redescobrimos a importância da ciência e dos cientistas para a sociedade. Biólogos investigaram as origens do vírus e dos seus hospedeiros, estatísticos calcularam as curvas epidemiológicas da transmissão viral, químicos desenvolveram testes e vacinas em tempo recorde, sociólogos analisaram os impactos sociais e psicológicos do confinamento. Conhecemos hoje os nomes de muitos notáveis cientistas portugueses: sabemos o que fazem, o que estudam, o que pensam. Porém, continuamos sem conhecer as equipas com quem trabalham. Continuamos sem saber que grande parte da ciência em Portugal é produzida por trabalhadores sem um contrato de trabalho – de forma condescendente apelidados de estudantes –, que vivem em constante precariedade, apesar de serem fundamentais para o desenvolvimento da ciência. Se dúvidas restavam quanto à natureza laboral da actividade dos bolseiros, dissipam-se agora perante as evidências. Porque todos os bolseiros merecem um trabalho digno e valorizado, a ABIC (Associação dos Bolseiros de Investigação Científica) bate-se pela revogação do Estatuto do Bolseiro de Investigação e pela substituição de todas as bolsas por contratos de trabalho, tal como já acontece noutros países europeus.

Ao longo da crise económica e social que se alastra em simultâneo com a crise pandémica, o Governo foi melhorando, por vezes a contragosto, os apoios sociais que aprovou. Nenhum desses apoios foi sequer equacionado pelo Governo para o caso dos bolseiros, que nunca tiveram o Estado do seu lado. Os bolseiros de investigação continuaram sempre a trabalhar, em casa se possível, apoiando os filhos, mesmo quando deixaram de ter acesso aos laboratórios, às bibliotecas e arquivos ou aos locais onde desenvolviam o seu trabalho de campo. Aqueles que se viram sem trabalho, porque o projecto de três anos por onde tiveram bolsa entretanto terminou, não tiveram qualquer apoio no desemprego, acabando por ser obrigados a procurar outro trabalho durante a pandemia.

Neste contexto, a ABIC lançou recentemente um abaixo-assinado pela prorrogação em três meses de todas as bolsas de investigação, independentemente da tipologia ou da fonte de financiamento. Uma medida que não será suficiente para muitas pessoas, nem compensará o trabalho hipotecado a tantas outras, mas que as ajudará a viver um pouco menos em permanente sobressalto, sendo o mínimo que o Governo pode fazer pelos bolseiros. Este abaixo-assinado está aberto à subscrição de todos os trabalhadores do ensino superior e da ciência, com ou sem contrato de trabalho, residindo ou não em Portugal, para que juntos mostremos que a ciência é tão avançada quanto robustas forem as condições dadas aos seus trabalhadores.

Não é de lugares-comuns e de frases de circunstância que os bolseiros de investigação precisam. Os trabalhadores científicos têm de ver as suas bolsas transformadas em contratos de trabalho, para que possam finalmente viver com dignidade – pela garantia de direitos que são de todos, mas que há muito tardam em chegar.

* As opiniões veiculadas neste artigo são da responsabilidade do autor e não reflectem necessariamente a opinião da ABIC.

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