Produzir uma boa lei, de valor reforçado

Está criada a imperativa oportunidade para, ainda na presente legislatura, dotar o país de uma verdadeira Lei de Bases do Sistema de Proteção Civil, capaz de servir de guia aos decisores políticos e operacionais em contexto de gestão de crises, sem experimentalismos legislativos ou ímpetos de governantes em exercício de funções.

Em sentido formal, as leis e os decretos lei têm igual valor (artigo 112.º, número 2 da Constituição da República Portuguesa), mas acima destes diplomas encontram-se leis de valor reforçado, discriminadas nos n.ºs 2 e 3 da mesma Lei Fundamental. É o caso de uma Lei de Bases, que atua como referência jurídica de uma determinada função do Estado. Este é o fim da Lei de Bases da Proteção Civil.

A primeira versão deste diploma estruturador do Sistema de Proteção Civil foi aprovada através da Lei 113/91, de 29 de agosto, antecedida de um debate parlamentar relativamente desenvolvido, conforme consta do Diário da Assembleia da República de então.

Na sequência dos graves incêndios florestais de 2003 e 2005 foi desencadeado um processo de revisão do ordenamento jurídico e institucional do Sistema. É neste contexto que o Parlamento aprovou a Lei 27/2006, de 3 de julho, que introduz alterações à anterior Lei de Bases.

Já em 2015, ocorre nova alteração à Lei de Bases, através da Lei 80/2015, de 3 de agosto, uma vez mais para acomodar no diploma novas disposições, nomeadamente no domínio do “patamar” municipal do sistema.

Feita a retrospetiva do percurso legislativo percorrido por este importante diploma, e perante a publicação posterior de diversa legislação claramente desalinhada do modelo e estruturas consagradas na atual versão da Lei de Bases da Proteção Civil, do qual são exemplos o Decreto Lei n.º 45/2019, de 1 de abril, que aprovou uma nova Lei Orgânica da designada Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, bem como o Decreto Lei 43/2020, de 21 de junho, que “Estabelece o Sistema Nacional de Planeamento Civil de Emergência”, importa apelar aos poderes legislativo e executivo (Governo e Assembleia da Republica) no sentido de serem capazes de elaborar uma verdadeira Lei de Bases do Sistema de Proteção Civil, que resulte de um efetivo processo de estudo e avaliação dos diplomas vigentes, dando coerência doutrinária e eficiência estrutural ao sistema.

A crise da pandemia constitui um exemplo vivo da desadequação do ordenamento legislativo, enquadrador de diversos tipos de eventos de natureza critica, razão por que alguns defendem a necessidade da elaboração de uma lei de emergência sanitária. Trata-se de um equívoco que apenas significa reconhecer que o quadro legal em vigor precisa de ser alterado, em sede de Lei de Bases da Proteção Civil. A não ser assim, então ter-se-ia de elaborar uma lei especifica por cada tipologia de risco, potencialmente geradora de emergências, ou seja, emergência sísmica, emergência de cheia, emergência radiológica, ou outras. Seria simplesmente absurdo.

Há na verdade a necessidade de repensar o conceito de proteção civil, dar-lhe coerência sistémica e estrutural, acolhendo as lições aprendidas da emergência sanitária gerada pela covid-19. Mas não é desejável que se criem instrumentos legislativos avulso.

Está criada a imperativa oportunidade para, ainda na presente legislatura, dotar o país de uma Lei capaz de servir de guia aos decisores políticos e operacionais em contexto de gestão de crises, sem experimentalismos legislativos ou ímpetos de governantes em exercício de funções.

Não será fácil conquistar a adesão dos governantes, convencidos das virtualidades de um sistema (Proteção Civil) que, infelizmente, tantas vezes a vida tem demonstrado ser estruturalmente frágil, embora servido por múltiplos empenhos e capacidades. Por isso é necessário continuar a intervir de forma responsável e persistente, para inquietar os cidadãos, a academia, os dirigentes e os operacionais dos agentes, de modo a que recusem a resignação e a rotina, apenas perturbada por graves crises – de consequências cada vez mais dolorosas –, momento em que se ganha consciência das nossas indisfarçáveis vulnerabilidades sistémicas.

Esta é uma matéria que não depende do Plano de Recuperação e Resiliência apresentado em Bruxelas e dos milhões de euros que lhes estão associados. Depende sim da consciência dos representantes de todos nós, quanto à necessidade de legislarem bem, solidamente alicerçados no conhecimento técnico e científico, facilmente demonstrável.

Não há tempo a perder. As ameaças e os riscos estão plenamente identificados. É necessário que não os ignoremos, adiando para a próxima catástrofe o que se deve fazer hoje, com competência e humildade, nomeadamente política.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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