A vacina da vizinha é pior do que a minha

Afinal parece que a luz que se via ao fundo do túnel não era a das pastagens solarengas prometidas, mas sim as do comboio cármico que avança contra um Reino cada vez mais desunido a alta velocidade.

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LUSA/ANDY RAIN

Já se vê luz ao fundo do túnel. As escolas reabriram, a criançada desamparou a loja e os pais já não têm que se esconder nas despensas em posição fetal para terem algum sossego. Os pubs já estão em contagem decrescente para a reabertura, recebendo um dilúvio de pedidos de reserva para a celebração nas esplanadas. Entre tantos confinamentos já muitos de nós se esqueceram de como se sai à noite, o que tem tido o seu impacto nas taxas de natalidade em queda livre. Para compensar, está toda a gente a preparar-se para um Verão de deboche e libertinagem, um verdadeiro Coronachella. Ao bom estilo de 2020, Portugal aguarda ansiosamente, de braços abertos, pelas hordas de viajantes e variantes de terras de Sua Majestade.

As expectativas são altas porque a campanha de imunização do Reino Unido vai de vento em popa, com quase 40% da população já vacinada e o número de contágios e mortes a cair a pique. A aposta em atrasar a segunda dose de inoculação para as 12 semanas correu bem e está a salvar vidas. O contraste com o que se passa do outro lado do canal da Mancha não podia ser mais claro. O desdém demonstrado pelos líderes europeus em relação à vacina AZ, ao estilo do adágio “a vacina da vizinha é pior do que a minha”, está a dar frutos e agora estão os frigoríficos carregados de vacinas e ninguém a querer recebê-las. O príncipe Charles puxou dos seus galardões de defensor de medicina baseada em evidência científica sólida e objectiva, ganhos e apurados como patrono da Faculdade de Homeopatia, para criticar as acções dos movimentos anti-vacinas . Mal podemos esperar pela posição oficial do Professor Karamba em relação aos 37 coágulos formados nos 17 milhões de vacinados com a dita mixuruca vacina.

Os noticiários deixaram de abrir com mortos às paletes nos hospitais e começaram a focar-se em temas mais optimistas como a obliteração das exportações para a União Europeia ou o facto de os tribunais terem que forçar empresas como a Uber a tratar os seus trabalhadores como seres humanos. A polícia londrina decidiu participar na celebração de uma semana dedicada à mulher, posicionada entre o Dia Internacional da Mulher e o Dia da Mãe (britânico), com violência contra vigílias pacíficas de mulheres a homenagearem vítimas de crimes de violência misógina. Ficamos tranquilizados, então, com a aprovação de uma nova lei no parlamento de Pyongyang Westminster, que confere à polícia poderes para cancelar e dispersar protestos que possam “causar incómodo público de forma intencional ou imprudente”.

Aguardemos pacientemente por essa nova geração de protestos que não incomodem, um dos quais está a ser preparado pelos profissionais da saúde. O governo britânico decidiu recompensar os trabalhadores que fizeram pausa à sua vida e puseram o bem estar da sociedade à frente do seu e do das suas famílias, enquanto o resto papava séries em casa. A sua contribuição desproporcional na luta contra a pandemia foi gratificada com um “aumento” de salário de 1%, equivalente a três libras e meia por semana. Tendo em conta que a inflação está prevista para 1,5%, isto equivale a mais uma perda de poder de compra a adicionar aos quase 10% desde 2010. Esperemos que as contas da água e luz possam ser pagas em aplausos. Mas não sejamos mal-agradecidos, pois o depósito para a consulta inicial de tratamentos psiquiátricos para o stress pós-traumático fica já angariado.

Será que as promessas do referendo de união acima de tudo e reinvestimento de contribuições europeias nos serviços de saúde britânicos não passavam de mentiras? Quem diria! Afinal parece que a luz que se via ao fundo do túnel não era a das pastagens solarengas prometidas, mas sim as do comboio cármico que avança contra um Reino cada vez mais desunido a alta velocidade.

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