O Natal no Reino Unido: Sunlit Uplands

Olhamos para o horizonte e, de soalheiro ou de pastagens, não se vê nada. Só montanhas. Tentamos manter o optimismo e focarmo-nos nos lados positivos de um Natal cancelado: os passaportes estão a caducar e assim evitamos ser convidados a entrar num quarto de interrogação do SEF da Portela para (de)bater o nosso direito a entrar no país.

Foto
Nick Fewings/Unsplash

Em Novembro de 2020 Boris Johnson escreveu uma carta aberta para todos os britânicos. Em verdadeiro estilo “Churchilliano” (a cujo clube de fãs preside), BoJo sacou dos violinos e pintou uma imagem de liberdade, felicidade e prosperidade para o Reino Unido em 2021: “We are so nearly out of our captivity. We can see the sunlit upland pastures ahead” (“Estamos prestes a sair do cativeiro. Já se vislumbram as solarengas pastagens de montanha no horizonte”).

Mal podia imaginar que este ansiado futuro chegaria mais cedo do que pensava. Nem um mês decorreu desde esta infame comunicação e o Reino Unido pôde finalmente libertar-se das algemas de Bruxelas. Umas mutações fizeram evoluir a covid-19 para a covid-20-estragar-o-Natal-e-adiantar-o-Brexit e dezenas de países fecharam-nos as fronteiras antes do tempo numa tentativa (provavelmente inútil) de contenção. Os britânicos olham constrangidos para as notícias, sentindo finalmente na pele os efeitos a que sujeitaram tantos outros durante o Verão. As férias canceladas e os repatriamentos forçados têm mais piada quando acontecem a i/migrantes.

Camiões vão-se acumulando nos dois lados das fronteiras e os supermercados avisam que há forte probabilidade de escassez de fruta e vegetais no período Natalício. Do mal, o menos, as ubíquas máscaras vão poder disfarçar os efeitos da falta de vitamina C nos nossos sorrisos. A UNICEF vai, pela primeira vez na sua longa história, alimentar crianças do Reino Unido. É capaz de não haver melhor analogia para 2020 do que a imagem de um motorista a morrer de tédio agarrado ao ecrã de um telefone num camião carregado com toneladas de alimentos a apodrecer num continente com tanta miséria, privação e gente a necessitar. Mal posso esperar por sentir o forte espírito de comunhão e calor humano quando nos aglomerarmos à porta de farmácias e supermercados, esperando pelos lançamentos aéreos de rações de arroz e penicilina.

O resto da Europa deleita-se em schadenfreude, com um sentimento irónico de satisfação perante o infortúnio de quem decidiu dar dois tiros nos pés para coçar uma micose, acompanhando os últimos episódios do final de temporada da série Reino Unido. No entanto esquece-se que as fronteiras se fecharam aproximadamente duas semanas depois de toda a diáspora já ter regressado, espalhando consigo a magia deste vírus ninja e mutante em imodestos ajuntamentos de celebração da quadra natalícia. Não tarda vão ser os traficantes de seres humanos líbios a fechar fronteiras a Norte do Mediterrâneo e a afundar cacilheiros repletos de europeus em desespero.

Entretanto, a vida continua, rodeados de peste nesta placa de Petri isolada, flutuando à deriva pelo oceano Atlântico fora. Olhamos para o horizonte e, de soalheiro ou de pastagens, não se vê nada. Só montanhas. Tentamos manter o optimismo e focarmo-nos nos lados positivos de um Natal cancelado: os passaportes estão a caducar e assim evitamos ser convidados a entrar num quarto de interrogação do SEF da Portela para (de)bater o nosso direito a entrar no país. Esperamos, com calma e enclausurados, por um futuro pós-vacina em que os abraços e os reencontros não se cinjam aos filmes da Disney e resultem num desconto de grupo na funerária. Isto se ainda houver futuro... 

Sugerir correcção
Comentar