Como Sísifo, com a pandemia às costas

A produção de vacinas contra a infecção por SARS-CoV-2 veio trazer um alento de esperança ao planeta. Mas Portugal, como habitualmente, tinha de fazer uso de várias singularidades.

A trágica pandemia que nos assaltou tem tido custos enormes, mas assimétricos: sociais, económicos e de saúde. Seguindo um padrão análogo ao de muitas doenças infecciosas, correspondendo ao aumento de vulnerabilidade com a idade – aqui porventura ainda mais acentuado –, a infecção por SARS-CoV-2 está a dizimar os mais idosos, contrastando com a relativa benignidade nos mais jovens. Apesar de constituir apenas um quarto dos infectados, a população com idade superior a 60 anos é onerada ou responde por 96,1% dos óbitos, sendo que o número de mortes nas pessoas com menos de 60 anos é residual (3,9% do total dos óbitos). A situação é especialmente penosa nos maiores de 80 anos, em que a mortalidade nos infectados é de 16,3% mas não é despicienda no escalão dos 70 aos 79 anos (6,6%).

Esta enorme disparidade levou a população a interiorizar (erradamente) que esta era uma doença que só atingia os velhos (e pessoas com comorbilidades significativas) e que, por isso, os jovens não incorriam em riscos significativos, o que não é inteiramente verdade. Daí que a tentação fosse fechar os velhos em “casulos” (em lares ou em casa) e esperar que a epidemia grassasse sem grandes consequências no resto da população, não afectando substancialmente a economia e a vida normal. Só que esta lógica negacionista, adoptada por alguns países, deu resultados inversos e paradoxais porque, desde logo, não é possível encerrar os idosos numa bolha asséptica; sucederam-se assim os surtos em lares com pesadas baixas e em ambiente familiar, porque algum tipo de contacto tem sempre de existir. Cabe aqui dizer que o que aconteceu à população de elevada idade foi – pode designar-se assim – desumano, em muitas partes do mundo, pela privação do contacto e do afecto e por níveis de isolamento irrazoáveis. As imagens, ainda bem presentes na nossa memória, de filas de ambulâncias à porta das urgências dos hospitais, são o exemplo sinistro e bem patenteador de que esta é uma epidemia que toca a todos e que deve ser encarada em conjunto.

A produção de vacinas contra a infecção por SARS-CoV-2 veio trazer um alento de esperança ao planeta. E os programas de vacinação foram avançando, celeremente nuns casos (os que se prepararam a tempo e horas), soluçante noutros como na Europa, que cometeu erros inadmissíveis de planeamento. Mas embora mais lentamente – o que, além do mais, tem importantes custos de prestígio – do que nos EUA, RU e Israel, a UE está há dois meses e meio a vacinar os seus cidadãos. Cada país programa contudo a sua logística e define os seus critérios. Portugal, que designou, em cima da hora, uma “task force” para superintender no processo, tinha de, como habitualmente, fazer uso de uma singularidade: ignorou olimpicamente os velhos, o principal grupo de risco, na priorização da vacinação, ao invés do que fez a generalidade dos países desenvolvidos – à excepção de autocracias como a Rússia e a Hungria, que preferiram vacinar primeiro os “caudilhos” Putin e Órban –, que iniciou a vacinação pelos mais idosos, em ordem decrescente de idade. Esta situação foi mais adiante parcialmente corrigida com a inclusão na 1.ª fase dos cidadãos com mais de 80 anos, mas o tom geral estava dado e foi penoso ver o poder político, inicialmente envolto em titubeação, a não pôr rapidamente termo a esse arroubo sem nexo. Cabe aqui uma palavra para o vice-almirante Gouveia e Melo, que veio trazer um novo arejamento à “task force” e tem sido impecável a comandar a logística do processo. A definição dos critérios e, mais do que isso, a identificação dos incluídos nesses critérios, com múltiplos erros de que vou tendo conhecimento – e que derivam naturalmente da má definição dos mesmos –, não são responsabilidade sua mas das autoridades de saúde.

Desconheço quem definiu os critérios de priorização das ditas comorbilidades, mas o menos que se pode dizer é que foram enunciados de forma ambígua e pouco clara e quantificável. Por exemplo, quando se define insuficiência cardíaca não se discrimina a classe e o grau; na doença coronária, não se especifica se abarca pessoas que já tiveram enfarte de miocárdio ou foram sujeitas a cirurgia cardíaca ou angioplastia ou apenas pacientes com doença coronária actual; e na insuficiência respiratória é notável que só sejam elegíveis os doentes com suporte ventilatório ou oxigenoterapia de longa duração; a única alínea que está quantificada é a da insuficiência renal.

Mas o que é grave e incompreensível é não terem sido incluídas nas ditas “patologias prioritárias” outras que pressupõem igual ou maior risco na associação à infecção. Desde logo, os doentes oncológicos. Ter um tumor em fase activa ou em tratamento é um importante factor de agravamento prognóstico, não só pelo estado de maior fragilidade das defesas imunológicas como pelo facto de a infecção originar frequentemente suspensão ou adiamento do plano terapêutico. É um autêntico calvário para os doentes com cancro que, além da sua doença, têm de lutar com a severidade da infecção. Esta asserção é igualmente válida para os transplantados de órgãos, células e tecidos. Basta consultar as guidelines das sociedades internacionais destas duas áreas para verificar que estes doentes deveriam ter precedência na vacinação. Outro grupo que apresenta prognóstico bastante desfavorável na generalidade das séries é o da designada síndrome metabólica, com coexistência em maior ou menor escala de hipertensão arterial, dislipidémia, diabetes tipo 2 e obesidade. Os diversos autores confluem na atribuição de particular gravidade à associação destas patologias. Várias outras condições, como doenças degenerativas neurológicas e musculares, doenças genéticas, etc., deveriam igualmente ser individualizadas como situações de risco acrescido.

Pois todas estas categorias, mais a dos doentes entre os 65 e os 80 anos – a idade, como se viu, é por si só um factor de risco de grande impacto –, foram todas relegadas para a 2.ª fase. Isto não seria especialmente danoso se não fosse a falta de vacinas e, em particular, o facto de todos os dias aparecerem novos grupos prioritários (p. ex., os professores e funcionários educativos, mais de 200.000) seleccionados em bases (mais políticas do que clínicas) que não têm nada a ver com a filosofia geral até agora seguida e cujo risco não ultrapassa o da população em geral (a probabilidade de alguém infectado morrer de covid-19 entre os 30 e os 39 anos é de 0,04%, entre os 40 e os 49 de 0,1% e dos 50 aos 59 de 0,3%).

Outro mito que importa desfazer é o de que a vacina impede a transmissão do vírus. O objectivo da vacina é fortalecer os mecanismos imunes da pessoa de modo a que ela responda mais célere e energicamente ao vírus e expectavelmente não contraia a doença ou a tenha com menor intensidade; mas não a previne de ser infectada e consequentemente de poder repassar o vírus. É claro que quando se atingir a tão almejada imunidade de grupo (o exemplo dos lares e dos profissionais de saúde é encorajador), deixa de haver organismos humanos para o vírus se poder replicar. Aí – esperamos todos nós –, se não surgirem entretanto mutações refractárias, cessará a pandemia, afastando de nós esta ameaça pendente do mito de Sísifo. Para já, vacinem-se depressa e sem hesitações os principais grupos de risco.

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