Se tivesse tempo (para falar de racismo)

António Costa, com um único tiro, afasta André Ventura do cenário político “credível”, descredibiliza Mamadou Ba e desvaloriza a causa anti-racista.

Numa entrevista ao PÚBLICO, quando questionado sobre o debate sobre racismo e a memória histórica, António Costa respondeu: “Preocupa-me profundamente e, se tivesse tempo, havia de escrever um artigo, beneficiando da minha própria experiência, de pessoa de origem indiana, que me dá uma certa experiência pessoal de saber o que é o racismo que existe e não existe na sociedade Portuguesa 

Este ignorar de estudos e números, dispensando Censos e centrando a sua opinião em experiência pessoal, parece descender da tendência global dos líderes populistas ou totalitários.

Na mesma entrevista, o primeiro-ministro associa o discurso racista de um populista ao de um activista anti-racista, como sendo responsáveis por um mesmo problema “artificial”. Tal como o Presidente Marcelo já o tinha feito, seguiu a linha do “alimentam-se um ao outro”, colocando no mesmo patamar, Mamadou Ba, que promove a luta contra o racismo, há vários anos, e André Ventura, que faz do racismo uma das suas ferramentas mais recorrentes. As recentes manifestações “anti-anti-racismo” são disso uma demonstração “Simpsoniana”. Como se pudéssemos aplicar a questão do ovo ou da galinha neste caso. Não podemos. Esta associação feita por António Costa não foi um momento de distracção ou um engano. São tudo comentários muito hábeis e inteligentes, com muito de jogo político e pouco de preocupação social. Infelizmente.  

“Está-se a abrir de forma artificial uma fractura perigosa para a nossa identidade”

É um golpe certeiro, este do desmentir a pertinência do debate, assustando com instabilidade social, porque, com a perspectiva de ficarmos ainda mais pobres, a médio prazo, nenhum de nós quer ver comprometida a paz da sua bica ou a do fino, ambos tirados a preceito. Conversas a sério, ao ponto de levantar a voz, concordemos em discordar com o VAR e mergulhemos na crise do nosso clube. É preciso muito tempo para abordar este tópico.

“Nem André Ventura, nem Mamadou Ba, representam aquilo que é a generalidade do sentimento do país. Felizmente”

Sob a justificação de uma opinião sua e, acto contínuo, comparando um adversário a um activista sem assento parlamentar, António Costa, com um único tiro, afasta André Ventura do cenário político “credível”, descredibiliza Mamadou Ba e desvaloriza a causa anti-racista, tentando assegurar a outra bi-polarização que conhece e da qual tem saído vencedor.

“Fascistas não têm lugar no PSD”

Aceitando Costa como politicamente superior, esta é a sua forma de beliscar e condicionar o PSD num acordo com o Chega, sendo aqui confuso o raciocínio, porque, ao mesmo tempo, diz não acreditar na autenticidade de Ventura como fascista, depois de ter “feito uma tese de doutoramento como a que ele fez”.

“É preciso evitar o erro de querer bipolarizar a vida polícia nacional entre André Ventura e todos os outros. Porque isso só tem um efeito que é valorizar o André Ventura (…) Dá-se credibilidade a um sujeito que não merece essa credibilidade” 

De volta à “bi-polarização”, que não é de opostos, proponho que desviemos o olhar para o centro, onde se governa e decide e onde podemos associar este tipo de discurso de António Costa ao de Rui Rio, quando este disse que “ainda ficamos é racistas com tanta manifestação anti-racista”. Ambos são rostos de um mesmo problema real. Tentam, acima de tudo, não apoquentar a maioria dos cidadãos votantes com temas polarizadores fora da sua agenda, desconsiderando, por exemplo, o problema real da abstenção e de todas as pessoas que não fazem parte do seu eleitorado potencial ou se revêem nas posições quer de um quer de outro. Uma maioria. 

Com 51% de abstenção nas legislativas em 2019, podemos oferecer-nos a mesma liberdade de concluir: nem António Costa, nem Rui Rio representam aquilo que é a generalidade do sentimento do país. Felizmente.

Talvez seja por sentirem que a generalidade dos políticos acabam por habitar uma realidade artificial, onde não há tempo para abordar problemas reais de todo o país, perdendo-se em jogos de xadrez.

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