Depois de 68 anos atrás das grades, o jovem condenado a prisão perpétua há mais tempo nos EUA abraça a liberdade

Em 1953, nos Estados Unidos, um adolescente de 15 anos agrediu e esfaqueou uma pessoa que não morreu. Mas foi considerado culpado de homicídio e condenado a prisão perpétua.

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Washington Post/Michael S. Williamson
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Joe Ligon
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Numa manhã de neve no início deste mês, Joe Ligon saiu do carro do seu advogado, com o cabelo branco como algodão e de andar firme, embora periclitante. Algumas horas antes, tinha comido panquecas, duas tigelas de cereais, sem leite – a sua última refeição na prisão. “Este não é um dia triste para mim”, disse. “Sinto-me muito bem. Como um sonho tornado realidade. Sabia que isto ia acontecer desde o primeiro dia.”

E o que espera Joe Ligon deste reinício? “Um tudo melhor.” Filho de agricultores do Alabama, Joe Ligon deu entrada na prisão quando Dwight Eisenhower era Presidente. Durante os 68 anos que passou encarcerado numa meia dúzia de instituições penais, o mundo exterior seguiu em frente. No julgamento, que durou um único dia em 1953, Joe Ligon e os co-arguidos foram referidos como “de cor”. Na escola, as suas aulas de educação especial foram chamadas de lições para “atrasados”. Foi encarcerado num estabelecimento chamado Pennsylvania Institution for Defective Delinquents para reclusos classificados pelos tribunais “como mentalmente deficientes com tendências criminais”.

Joe Ligon, hoje com 83 anos, nunca teve a sua própria casa, usou um telemóvel, pagou uma conta, votou, ganhou um salário, casou ou teve filhos. Enquanto esteve preso, quase toda a sua família morreu, a maioria dos homens foram assassinados. Tudo o que lhe resta é uma irmã, algumas sobrinhas e sobrinhos. Esta foi a sua principal tristeza: “Teria sido muito melhor se eu tivesse saído quando os meus pais ainda eram vivos.”

Joe Ligon tinha 15 anos naquela noite miserável, quando tudo correu mal. Agora, é um homem velho com poucos dentes. Mas um homem velho livre e, dadas as circunstâncias, com uma saúde notavelmente boa. O homem não toma quaisquer comprimidos, excepto vitaminas.

“Sinto-me muito bem. Uma razão para isso é porque estou fora. Estou em casa”, estimou. “Quando se recebe [uma sentença] perpétua, perde-se a esperança, especialmente se se desiste. Não se fazem planos como eu fiz planos.” Os seus planos passavam sempre por ser livre.

Adolescentes estúpidos e horríveis

Naquela noite de Fevereiro, Joe Ligon e outros cinco adolescentes despejaram duas garrafas de vinho, causaram confusão pelas ruas do Sul da Filadélfia, perto de casa, e esfaquearam oito homens, dois dos quais morreram. Foi a primeira vez que ele bebeu, lembra-se. Eram só adolescentes: primeiro a serem estúpidos e depois horríveis. Os assassinatos fizeram todas as primeiras páginas, os adolescentes apelidados de “Os Caçadores de Cabeças”, embora Joe Ligon insista: “Não éramos um gang.”

Os seus advogados instruíram-no a declarar-se culpado de todos os factos, deixando ao juiz a determinação dos crimes. Joe Ligon admitiu ter apunhalado uma vítima que sobreviveu, argumentando sempre que nunca matou ninguém. Mas foi condenado a prisão perpétua com poucas hipóteses de alguma vez sair. Desde então, todos os co-arguidos, ou seja, os outros cinco adolescentes, foram libertados ou morreram.

Os Estados Unidos lideraram durante muito tempo o mundo no número de jovens a quem era aplicada a prisão para toda a vida sem possibilidade de liberdade condicional (conhecida como JLWOP), uma prática condenada pelas organizações de direitos humanos e liberdades civis, questionada pela crescente investigação sobre o desenvolvimento do cérebro adolescente e, em última análise, descrita como uma pena cruel e invulgar, uma violação da Oitava Emenda, numa série de decisões do Supremo Tribunal dos EUA entre 2005 e 2016.

A Pensilvânia liderou durante muito tempo o país, de longe, com um quarto do total de jovens condenados a prisão perpétua. Sessenta por cento desses prisioneiros eram de Filadélfia, a cidade grande mais pobre do país, onde a esmagadora maioria é negra.

O encarceramento de Joe Ligon por tanto tempo, excluindo 37 tratamentos para o cancro da próstata, custou ao Estado cerca de três milhões de dólares. É que os departamentos correccionais gastam muito mais com os prisioneiros à medida que estes envelhecem, devido às suas necessidades de saúde, apesar de serem menos perigosos para a sociedade.

Uma pena cruel

Joe Ligon bateu todos os recordes invejáveis, tornando-se o mais antigo prisioneiro e o mais antigo dos jovens a quem foi aplicada a pena perpétua. Ele é um símbolo deste trágico legado da lei. Mas ele é também um homem velho, a enfrentar novos desafios ao reentrar num mundo moderno que mal conhece.

Deixou a prisão com 14 caixas de cartão, metade das quais recheadas de documentos relacionados com o seu processo – embora não saiba ler.

É culpado de roubo e agressão, disse o defensor público Bradley Bridge, advogado de Joe Ligon há 15 anos, que fez da libertação de menores uma missão de vida, “mas não é culpado de qualquer homicídio”. “Merecia uma punição adequada. Mas esta é uma punição particularmente desproporcional para alguém que não é culpado de homicídio.”

O que é particularmente cruel na condenação de um jovem a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional, disse Bridge, “é o negar-lhes a sua humanidade”. “Nega-se-lhes a capacidade de mudar, de demonstrar que podem sair da prisão e ser membros contribuintes da sociedade.”

O caso de Joe Ligon pareceu flagrante a Bridge: “Para ser muito claro, ao ler a transcrição, se isto fosse a julgamento hoje, Ligon seria considerado culpado de roubo, agressão agravada ou tentativa de homicídio, e teria sido condenado a uma pena de cinco a dez anos.”

Em 2016, após o Supremo Tribunal dos EUA ter deliberado que todos os casos de jovens condenados a perpétua deviam ser revistos, Joe Ligon tornou-se elegível para obter a liberdade condicional. Bridge disse a Joe Ligon que podia lutar pela liberdade condicional a partir da sua cela ou da rua, e aconselhou a rua. Mas a liberdade condicional era um anátema para Joe, e recusou.

Numa audiência na Primavera seguinte, o juiz disse-lhe: “Não quero que morra na prisão.” Mas, mesmo assim, Ligon optou por cumprir quase mais quatro anos.

Na primeira manhã após a sua libertação, ele sentou-se no escritório do seu advogado – tinha vindo directamente da prisão, com uma paragem para um teste rápido ao coronavírus (negativo). “Sou um tipo de pessoa teimosa. Sou assim desde que fui capaz de falar”, disse ele. Afinal, não queria ter de pedir autorização para viajar para Nova Jersey para visitar a sua irmã e sobrinha. Depois de tantos anos, ele queria estar livre de supervisão. “O meu caso não é para liberdade condicional depois de tanto tempo”, disse. “Quero ser livre da forma correcta.”

Bridge voltou a aligeirar o caso, nos termos de Joe Ligon, pedindo que ele fosse libertado sem liberdade condicional. Em Novembro, um juiz decidiu que poderia ser libertado no prazo de 90 dias. O que aconteceu este mês.

A liberdade de Joe Ligon veio com as suas próprias dores de cabeça tanto para os seus assistentes sociais como para o programa de reinserção de reclusos. Alojamento, seguro de saúde, identificação adequada e mais tudo o que é necessário para viver uma vida no mundo exterior. Tudo junto exigiu o trabalho com mais de uma dezena de diferentes agências. Joe Ligon recebeu uma carteira, a sua própria televisão com um pacote desportivo (ele adora todas as equipas de Filadélfia, desde que estejam a ganhar) e um telemóvel com minutos ilimitados.

A sua sobrinha Valerie, a filha da irmã doente, planeia ser uma presença na sua vida, tal como Joe tem sido na dela. Ela estava lá para cumprimentar o tio, horas após a sua libertação. “Não será fácil, mas ele está tão feliz”, comentou Valeriea. “Isto é tudo novo. O nosso mundo é tão estranho para ele.” Um casal com uma casa de dois andares na Filadélfia Ocidental, com uma agência que cuida de cidadãos mais velhos, concordou em acolhê-lo.

Um momento decisivo

O primeiro dia de Joe Ligon também foi importante para as muitas pessoas que o ajudaram e que formam a Team Joe. Após a paragem no escritório de Bridge, o advogado conduziu Joe Ligon até à sua nova casa, onde a sua família e equipa de apoio celebraram na rua e depois dentro de quatro paredes. Entre os seus defensores estava John Pace, 52 anos, um ex-condenado que conviveu com Joe Ligon durante duas décadas na prisão de Graterford e que, entretanto, obteve o bacharelato de Villanova e trabalha para o Youth Sentencing & Reentry Project (YSRP).

Na rua estreita e lateral da sua nova casa, John Pace reconheceu Joe Ligon, que ainda usava o seu boné castanho esbatido. O que não era o traje próprio de um homem livre. “Era um chapéu de prisão. O que faz Joe com esse chapéu?”, perguntou Pace, incrédulo.

Joe Ligon parou, atirou o boné ao chão, e começou a pisá-lo, um acto que nunca teria sido permitido na prisão. Toda a Team Joe pisou o boné. Mais tarde, o homem atirou-o para o lixo e colocou um novo chapéu – um novo começo. “Esse foi um momento decisivo”, disse Pace.

“Digo-vos que esse foi talvez o ponto alto de toda a minha carreira”, disse Eleanor Myers, uma conselheira sénior do YRSP e professora emérita de Direito emérita. “Porque era a liberdade.”

Tudo o que Joe Ligon podia fazer era sorrir. A sua nova casa é “bela”. Está limpa. “Entrei e consegui sentir o cheiro da frescura”, disse ele. Ele estava demasiado entusiasmado para comer.

“Tudo me parece diferente. É tudo novo para mim”, disse. Durante a paragem no escritório do seu advogado, Joe Ligon olhou pela janela do oitavo andar, a dois quarteirões da sala do tribunal onde foi condenado em 1953, e afirmou nunca ter estado tão alto em qualquer edifício. “Estou feliz por ter vivido tempo suficiente para ver isto.”

Joe Ligon descreve-se a si próprio como um solitário, e os colegas reclusos descrevem o “sr. Joe” como alguém calado, alguém que se manteve calado. Trabalhou como guarda na prisão. A limpeza é o seu forte. Ele adora empurrar uma vassoura – isso, e manter bons hábitos.

Mas Joe Ligon exalta a sua atenção e partilha a sua história. Quando o encontrei pela primeira vez para um artigo em 2010, Joe Ligon falou sem parar durante cinco horas. Se não for impedido, ele descreverá a noite que terminou a sua antiga vida, como se ainda estivesse a montar uma defesa.

Pediu que não fosse transferido para o seu antigo bairro do Sul da Filadélfia; ele não quer ter nada a ver com o local. “A noite em que me meti em sarilhos foi no Sul da Filadélfia. O meu irmão mais novo foi assassinado no Sul da Filadélfia. O meu pai foi assassinado no Sul da Filadélfia”, enumerou. “Só assassínios, assassínios, assassínios.”

No segundo dia da sua nova vida, Joe Ligon foi comprar um casaco, umas calças novas e roupa interior. As lojas tinham-se tornado tão grandes, tão brilhantes. Após 36 horas, Pace conseguiu finalmente que Joe Ligon comesse alguma coisa, passando num “drive": frango Popeye, puré de batata e salada de repolho.

O poder da escolha

Joe Ligon sobreviveu a muitas das prisões que o alojaram. Graterford, a sua morada mais longa, fechou em 2018. Na sua juventude, foi um pugilista do programa de Holmesburg, que foi desactivado em 1995, tendo Bernard Hopkins sido o seu pugilista mais famoso. Joe Ligon foi a certa altura levado para avaliação na Penitenciária do Estado do Leste, que abriu em 1829 e que chegou a albergar Al Capone e Willie Sutton. Fechada em 1971, é agora um local histórico e casa da atracção anual de Halloween, Terror Behind the Walls.

Mas Joe Ligon não tem qualquer intenção de visitar o espaço, e recusou-se a participar numa exposição. “Não se adequa ao meu gosto”, disse.

A escola nunca foi uma parte vital da sua vida. Raramente ia às aulas no Alabama, onde colhia algodão e tabaco, preferindo passar tempo com os seus pais, como um verdadeiro menino da mamã, como se recorda. Quando tinha 13 anos, a família mudou-se para norte, para o Sul da Filadélfia. O seu pai encontrou trabalho como mecânico; a mãe, como auxiliar de enfermagem. Mas ele evitou a escola e, na prisão, não teve aulas para melhorar a sua leitura e escrita rudimentares. Pedia aos seus colegas reclusos para escreverem cartas por ele, e para lerem as que ele recebia.

Agora, Joe Ligon espera trabalhar, de preferência a limpar um dos escritórios das pessoas que o ajudaram na sua libertação. Pace planeia arranjar-lhe uma inscrição num ginásio local. Quando o tempo melhorar, Joe Ligon quer visitar os parques locais. Ele aguarda com expectativa os restaurantes onde é livre para seleccionar “boa comida a partir de um menu”.

Ele sonha com escolhas. “Muitas senhoras vão gostar de mim”, acrescentou. “Eu gosto de boas roupas, que me sirvam. Gosto de cheirar bem. Vou fazer disso o meu negócio: respeitar as mulheres.” Está até disposto a regressar à prisão e a falar com os jovens que ainda estão lá dentro. “Já fomos ao inferno e voltámos”, disse ele. “Mas eu gosto das minhas hipóteses em termos de sobrevivência.”

Em Filadélfia Ocidental, Joe Ligon parou com Pace em frente a um mural criado por reclusos em Graterford. Mark Cumberbatch, um sargento da prisão, reconheceu Ligon e veio dar-lhe as boas-vindas ao bairro. “Ele estava sempre calado, um bom rapaz”, disse Cumberbatch.

Foi por isso que Joe Ligon se tornou famoso na prisão: a filha de Bridge está a fazer um documentário sobre a sua vida; a CNN, a PBS e a televisão alemã telefonaram.

Na sua primeira noite fora, Joe Ligon não dormiu melhor do que a sua última noite dentro, mesmo sem as sirenes e luzes ofuscantes que, durante décadas, o acordaram às 6h da manhã.

“Isso é um ajuste. Tem de se habituar a governar a sua própria vida. A sua vida tem sido controlada durante tanto tempo”, disse Pace, sentado com Joe Ligon num banco de trás da Igreja Baptista da Via Bíblica, o seu local de culto, que ele espera que Joe frequente. “Isto vai demorar algum tempo a perceber exactamente o que ele quer fazer”.

Joe Ligon concordou. Ele precisava de tempo para se adaptar à liberdade e a uma existência menos regulamentada.

“Durante tanto tempo, vive-se de uma certa maneira”, disse ele. “Fica-se imune à mudança. O nosso sistema fica imune a isso. Não há melhor forma de o descrever”. O objectivo, disse ele, é “viver uma vida tão normal quanto eu possa”.

Um dos seus primeiros pedidos foi um despertador, que Bridge comprou no CVS, na manhã da sua libertação. Joe estava ansioso pela manhã, não muito longe de agora, quando precisaria de ajuda para acordar de uma noite de sono e a sua agenda era, finalmente, toda sua.

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