Internos hoje, os especialistas de amanhã

Torna-se essencial que o Ministério da Saúde defina regras transversais e uniformes para todos os internatos que acabem com a insegurança e desamparo dos internos, agravadas agora por novo esforço reorganizativo em resposta à chamada “terceira vaga da pandemia”.

Para aqueles que não estão a par das especificidades da formação médica pós-graduada em Portugal, aqui fica a explicação. Os jovens médicos iniciam o seu Internato de Formação após seis anos de licenciatura/mestrado em Medicina. Volvido um ano de Internato de Formação Geral (IFG) dá-se o ingresso no Internato de Formação Especializada (IFE), iniciando-se o percurso clínico na especialidade escolhida.

O IFE é um período de aquisição e solidificação de conhecimentos teóricos e práticos, em que o Médico Interno assume gradualmente responsabilidades e autonomia crescentes no acompanhamento de doentes e no dia a dia do serviço onde ficou colocado. Deste percurso fazem parte diferentes períodos de estágios clínicos, com consequente avaliação. Em muitos casos, estes estágios são realizados em locais distintos da instituição de colocação.

O IFE culmina numa prova de avaliação final, após a qual ao médico interno é concedido, mediante aprovação, o título de especialista.

É este percurso longo e complexo, com quatro a seis anos de aprendizagem, supervisão e acompanhamento, que nos permite formar em Portugal médicos de qualidade, garantes de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) forte e de práticas assentes numa Medicina de excelência. 

Em março de 2020, a necessidade de mitigar a progressão da pandemia de covid-19 e de dar tempo às instituições para adequarem a sua resposta determinou mudanças súbitas e profundas no funcionamento do SNS.

Esta reorganização levou a alterações no normal decurso dos Internatos Médicos, afetando de forma assimétrica os internos do país, com praticamente todos os estágios e atividades formativas cancelados, alterados ou realizados em moldes diferentes dos previstos nos respetivos programas de formação.

De um modo geral, a alteração significativa dos Internatos Médicos em 2020 aconteceu no primeiro trimestre da pandemia, durante o qual muitos internos foram deslocados para o combate à pandemia.

A 31 de março de 2020, o Conselho Nacional do Internato Médico emitiu (CNIM) um parecer em que referia que “o trabalho desenvolvido pelos médicos internos deve ser dirigido às necessidades assistenciais de cada instituição, sempre que assim seja possível mantendo-se os estágios planeados” e que “os estágios que estão a decorrer (...) devem prosseguir, adaptados à situação atual”.

Na prática, o que se verificou foi que, da mesma forma que a suspensão de estágios e internatos se deu de forma assíncrona, com as diferentes instituições a tomarem medidas consoante a sua situação particular e o impacto da pandemia sobre o seu funcionamento, também os moldes em que estas alterações se operaram foram assimétricos nos diferentes locais de formação. Enquanto em algumas instituições os internatos foram suspensos, noutras este período foi contabilizado como estágio, apesar de não existir enquadramento para tal, gerando assimetrias a jusante.

Em todas estas situações, sem exceção, os médicos internos demonstraram-se totalmente disponíveis para o SNS e para a população, colocando em segundo plano o seu percurso formativo.

Apesar das profundas alterações aos programas de formação de todos os internatos médicos, aliás noticiadas no PÚBLICO de 15 de novembro de 2020, até à data não existem orientações claras e inequívocas da parte da tutela, capazes de corrigir as assimetrias causadas ou de servir de linha orientadora para as tomadas de decisão a nível das instituições de formação.

Do mesmo modo, também não está definido como se deve acomodar o trabalho realizado durante a primeira fase da pandemia, com reflexo na duração total dos programas de internato e nas datas para realização de exames finais de avaliação de todos os internos, de todos os anos.

Sem esta clarificação, o planeamento do percurso formativo é impossível, com incertezas relativas ao eventual reagendamento de estágios. Os internos atualmente a cumprir os últimos anos de formação são particularmente atingidos, pela menor margem temporal de que dispõem.

Na Portaria n.º 9-A/2021, de 7 de janeiro, procedeu-se à recalendarização da época normal de avaliação final do internato, mas este documento é omisso relativamente às restantes questões respeitantes ao decurso dos internatos e arrisca-se a ser impraticável atendendo ao atual contexto pandémico.

Passado quase um ano, a circular do CNIM de 25 janeiro de 2021 e a posição da Ordem dos Médicos de 2 de fevereiro de 2021 reconhecem as assimetrias decorrentes do impacto da pandemia na formação médica, mas insistem em soluções numa lógica “caso a caso” para o problema do reagendamento de estágios cancelados ou alterados.

Estas propostas não dão uma solução transversal, podendo agravar ainda mais as próprias assimetrias que propõem corrigir, acentuando a disparidade dos percursos formativos de internos de diferentes especialidades e instituições, e não avançando com respostas para todos os internos, independentemente do ano em que se encontram.

Passado todo este tempo, urge que a tutela uniformize as alterações que estão a acontecer nos Internatos Médicos de forma assimétrica, ao sabor de necessidades urgentes e díspares. Torna-se essencial que o Ministério da Saúde, diretamente ou através da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), defina regras transversais e uniformes para todos os internatos que acabem com a insegurança e desamparo dos internos, agravadas agora por novo esforço reorganizativo em resposta à chamada “terceira vaga da pandemia”.

Cientes da sua responsabilidade, e sem nunca terem voltado as costas às necessidades das populações, os Médicos Internos assumem diariamente a sua responsabilidade clínica e humanista.

Com o esforço de todos a pandemia será ultrapassada, seguramente. Resta-nos assegurar que não deixa marcas futuras na qualidade da Medicina em Portugal. São necessárias repostas para que se compensem, e não se perpetuem, as disparidades formativas criadas neste momento de exceção. Só assim conseguiremos criar médicos especialistas de qualidade. Só assim conseguiremos assegurar a maior conquista da nossa democracia — o Serviço Nacional de Saúde.

Pedro Frias Gonçalves, Paulo R. Barbosa e Sónia Farinha Silva, médicos internos de formação especializada

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