Do vinho à covid, uma lição medieval (com música)

Em Itália, ao contrário de Portugal, chegaram a reabrir-se postigos para “venda segura” durante a pandemia.

No combate à pandemia, quis o governo português, como já aqui se disse, abolir o uso dos postigos a pretexto de evitar filas, ajuntamentos, convívios e outros perigos públicos. Isto ao mesmo tempo que, nos estabelecimentos de comércio e serviços considerados essenciais por lei, continua a ser possível entrar em lojas e manusear produtos, em contacto (mesmo que distanciado, com máscaras e gel) com outros clientes e, claro, com os funcionários de serviço.

Exemplo bem diferente é o de um país que já foi muito dilacerado pela pandemia, a Itália. Na região da Toscana, postigos centenários foram reabertos em 2020 para servirem de postos de “venda segura” aos habitantes, recuperando uma prática antiga, já que tais postigos tiveram idêntico uso durante a segunda praga da peste que assolou a Europa no século XVII. Mas não foram criados para esse fim. De início, tais postigos, denominados buchette del vino, tinham por finalidade vender vinho a retalho. Cosme I de Médici (1519-1574), primeiro grão-duque da Toscana e o segundo duque de Florença, quis agradar aos nobres, decretando que estes podiam vender o vinho que produziam nas suas propriedades a partir dos seus palácios, sem pagar impostos e dispensando intermediários. E assim foram surgindo buchette del vino bem junto aos portões senhoriais, servindo ainda essas “pequenas portas para o mundo” também para actos de caridade à medida da época, com cedência de excedentes alimentares aos pobres.

A peste negra, porém, veio dar-lhes outro uso: o defensivo. Tais portinholas eram agora uma barreira contra o contágio, e tudo o que se vendia através delas (vinho e outras bebidas, em copo ou garrafa) mantinha prudente distância entre comprador e vendedor. Num documento raro, Relato do contágio, estado em Florença nos anos 1630 e 1633, escrito pelo bibliotecário grão-ducal Francesco Rondinelli e citado no diário italiano La Repubblica em Maio de 2020, dizia-se que, a título preventivo, “as moedas pagas pelo vinho eram retiradas pelo estalajadeiro com uma pá de cobre e depois esterilizadas em vinagre”. O La Repubblica voltou a esta história porque na Toscana as ancestrais buchette del vino estavam a ser reabertas e reutilizadas como defesa contra a covid-19, vendendo-se através delas bebidas e produtos alimentares.

Casando-se postigos e vinho (um matrimónio à italiana, já que em Portugal, nesses termos e nestes dias, ele é categoricamente proibido), também deles a música tem feito eco, ao longo de décadas. Começando pelos postigos, entre muitos exemplos que decerto haverá, aqui ficam alguns. Como o da canção tradicional Ó ferreiro: “Ó ferreiro guarda a filha/ Não a ponhas ao postigo/ Que anda aí um rapazinho/ Que a quer levar consigo”; ou o Novo fado alegre, escrito por Ary dos Santos e musicado por Fernando Tordo, que Carlos do Carmo defendeu no Festival da Canção de 1976: “Amigo/ Vou-te bater com as palavras ao postigo”; mas também Lá em baixo, de Sérgio Godinho: “E no entanto sobressalto/ Se me batem ao postigo”; ou Tecto na montanha, de José Afonso: “Num lugar ermo/ Só no meu abrigo/ Aí terei meu tecto/ E meu postigo”. Mais recentes, registe-se ainda Rosa à janela, dos Baile Popular (“Lembro-me dela ao postigo/ E agora põe-se à janela”), Namorei sempre à tardinha, de Francisco Naia (“Chegadinho, chegadinha, chegadinhos/ Ao postigo e à janela”) ou Amores de Jericó, de Celina da Piedade e Alex Gaspar (“Deixo-te ao postigo/ Um lenço e uma rosa”).

Já o vinho tem na poesia e na música uma história bem mais antiga e quase sempre ligada aos amores, como comprovam o milenar Cântico dos Cânticos: “Sustentai-me com taças de vinho,/ Cuidai-me com maçãs,/ Pois eu estou doente de amor” (Ed. Artis, 1993, Capítulo 2); ou o Rubayat de Omar Khayyam, 1044-1125: “Se os que amam o vinho e o amor vão para o Inferno, então o Paraíso deve estar vazio” (Ed. Coisas de Ler, 2002, pág. 56). No que toca a Portugal, um livro recente vem recordar-nos os passos dessa história. Chama-se Amor e Vinho, da Poesia Luso-Árabe à Nova Música Portuguesa, séculos XI/XXI (Ed. Colibri, 2020), e o seu autor, Eduardo M. Raposo, percorre nele épocas, autores, poemas e canções onde o amor e o vinho se entrelaçam; ou mesmo discos inteiros, como Vinho dos Amantes, de Janita Salomé. Se estivéssemos em Florença, talvez o vendessem ao postigo. E com uma taça de vinho a acompanhar.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários