A suspensão dos prazos judiciais e uma estranha sensação de déjà vu

A suspensão dos prazos convém a uma minoria de advogados condicionados por obrigações parentais, mas prejudica seriamente todos os demais.

O Conselho Geral da Ordem dos Advogados veio a terreiro defender que os prazos judiciais – e, consequentemente, a marcha dos processos judiciais – não deveriam ser suspensos durante o novo confinamento, e que as próprias diligências em tribunal deveriam continuar a realizar-se.

É difícil não concordar com a posição da Ordem dos Advogados. Na verdade, a suspensão dos prazos judiciais e das diligências em tribunal, já anunciada pelo primeiro ministro, causará inevitáveis atrasos nos processos em curso, e será nociva para todos os cidadãos envolvidos em litígios judiciais, especialmente quando, como é sabido, a lentidão da nossa justiça continua a ser fonte de preocupação.

E nem se diga que a impossibilidade de deslocações presenciais ao tribunal sempre tornaria inevitável esta solução, já que, como é evidente, poderia ter-se optado por uma solução em que as diligências seriam realizadas por meio de videoconferência, adiando-se apenas aquelas que, por qualquer motivo, não pudessem realizar-se por esta via.

A suspensão dos prazos é também especialmente perniciosa para os advogados, por definição profissionais liberais, já que processos parados equivalem a ausência ou forte redução de rendimentos.

Já os demais atores judiciários, como juízes, magistrados do Ministério Público e funcionários judiciais não estão, naturalmente, condicionados por preocupações referentes a quebras de rendimentos.

Foi, pois, com alguma estranheza que assisti a muitos advogados pronunciando-se contra a posição da Ordem, alegando falta de condições de trabalho e reclamando a suspensão dos prazos. Se, relativamente à impossibilidade de diligências judiciais presenciais, parece que todos estaremos de acordo – deverão ser realizadas por videoconferência ou, não sendo possível, adiadas –, já a suspensão dos prazos judiciais parece francamente desnecessária.

Na verdade, e com exceção daqueles advogados que têm crianças pequenas ao seu cuidado – e eu sou um deles –, não se vislumbra que o confinamento em vigor condicione irremediavelmente a normal execução do trabalho, sabendo-se que a esmagadora maioria dos atos é hoje realizada remotamente (via CITIUS, SITAF e e-mail), e todos conseguimos comunicar à distância, nomeadamente com clientes, tribunais e outros advogados e sem necessidade, na esmagadora maioria das vezes, de reuniões presenciais.

É certo que elaborar peças processuais ao mesmo tempo que se atende às necessidades de crianças de colo requer alguma arte e engenho, mas não é impossível. Foi esta, aliás, a realidade de centenas de milhares de profissionais de outras áreas em teletrabalho, com crianças em casa, durante o primeiro confinamento em 2020.

Há, porém, que ter em conta que nem todos os advogados têm crianças pequenas ao seu cuidado. E, não esqueçamos, sobretudo, as lições do primeiro confinamento durante o qual, poucas semanas após o seu início, já muitos colegas se queixavam de dificuldades económicas e reclamavam apoios estatais!

A suspensão dos prazos convém a uma minoria de advogados condicionados por obrigações parentais, mas prejudica seriamente todos os demais.

A advocacia é uma profissão liberal, que é como quem diz livre, e assim deve continuar pois a independência dos advogados constitui garantia dos cidadãos. Na advocacia livre, por definição, não existem horários das 9h às 5h ou salários certos e regulares. Não há “baixas” nem licenças – ao menos enquanto não for revisto o atual regime assistencial.

É assim a profissão e, por isso mesmo, nem a todos convirá.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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