O medo já chegou à escola

Talvez assim, cada um para seu lado, no umbigo da sala de estar de cada família – e saboreando o medo e a falência de todos os sistemas que nos regem – se perceba que o único lugar onde as crianças estavam realmente seguras era na escola.

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Daniel Rocha

A escola é, e muito superficialmente, o único garante da equidade no crescimento e desenvolvimento de todas as crianças do país: no limite, sem ela, não há cantina que ponha almoço na mesa.

E sabendo disso, das tremendas desigualdades que existem entre alunos, de Norte a Sul e do(s) centro(s) às periferias, paira sobre nós, de novo, o delírio do ensino a distância. Aqui chegados, de pouco ou nada nos valem as referências às mais basilares teorias pedagógicas: sabemos que aprender a recortar formas desenhadas sobre um papel com uma tesoura é um movimento psicomotor que se desenvolve em idade pré-escolar e que nos acompanha até à nossa morte, mesmo que não o saibamos porque tal se situa exclusivamente ao nível do inconsciente. Ignoramos, doutos e adultos, que houve em tempos alguém que nos ensinou a recortar um papel, abrindo e fechando uma tesoura com os dedos, percorrendo o caminho de uma forma desenhada, inaugurando um neurónio, um nervo, um músculo, um movimento associado a uma vontade de criação, ou simples vontade; uma ideia, uma palavra, um gesto. Ignoramos, como se isso não nos servisse qualquer propósito.

E não serve, ante a economia em colapso (sempre a economia!) e uma nova suspensão das salas de aula, enquanto a escola agoniza debaixo de uma insuportável atmosfera de medo

A escola faz parte de uma sociedade que sucumbiu à inesgotável sede de segurança. Sucumbe ela própria à tentativa de reprodução da realidade escolar em outros espaços que não a realidade escolar, como se isso não fosse – e pelos motivos mais lógicos – a construção de uma falsa realidade. Ignorando também – e pelos motivos mais lógicos – que a reprodução de conteúdos e matérias sobre uma falsa realidade é tão simplesmente a reprodução de conteúdos falsificados, que de nada servirão.

De tão falsa, essa realidade terá a capacidade nunca antes vista de alienar. E sobre isso, professores, educadores, auxiliares e directores não terão qualquer responsabilidade, ainda que o tenham feito no passado sabendo que isso cimentaria o insucesso escolar e o abandono. Cumprem apenas a vontade de uma sociedade que não sabe o que é a escola e nunca saberá. E de que serve a escola, na era do medo? Talvez num futuro não tão distante não nos restem neurónios nem nervos, músculos ou movimentos, ideias, palavras, gestos. E de que nos serviriam os gestos, na era do medo, quietos?

Fechando, interrompemos. Sim, interrompemos. Se tudo correr bem, por 15 dias. Se não correr tão bem, por 30 dias. Depois disso, não haverá escolha: temos de voltar. Mas por agora interrompemos. Assim, colocamos a descoberto os pais que com notável ousadia, assistindo ao atingir de novos recordes pandémicos e ao perigo iminente, têm a coragem e a determinação de afirmar em caixas de comentários que não sabem o que fazer com os filhos em casa, suplicando por aulas a distância. Terão realmente medo dos números, ou de outra coisa?

Talvez assim se perceba, de forma clara e de uma vez por todas, onde reside o problema. Talvez assim se perceba de forma muito clara que o problema nunca foi nem nunca será a escola. Talvez assim, cada um para seu lado, no umbigo da sala de estar de cada família – e saboreando o medo e a falência de todos os sistemas que nos regem – se perceba que o único lugar onde as crianças estavam realmente seguras era na escola. E a escola dormirá de consciência tranquila.

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