O fracasso da educação digital

Transição digital? Sim, mas devagarinho. Quiçá para uma 4.ª ou 5.ª vaga esteja tudo mais ou menos remendado. O século XXI terá de esperar mais um pouco.

A decisão inédita e algo inesperada de fechar durante duas semanas (até ver) todas as escolas por completo, incluindo o chamado ensino à distância, para além de demonstrar até que ponto o Governo perdeu por completo o rumo nestas duas últimas semanas, é uma declaração ruidosa do fracasso do projecto a que chamaram pomposamente Escola Digital, prometendo o primeiro-ministro 400 milhões para o efeito, há mais de sete meses.

Depois de tanta declaração entusiasmada e mobilizadora sobre a modernização digital das escolas, sobre o “salto” indispensável para uma “Educação para o século XXI”, condição maior para a preparação das novas gerações para a “Economia do Conhecimento”, chegamos a esta semana praticamente sem nada de novo a esse nível, ou pelo menos sem nada de verdadeiramente operacional. Mais de sete meses depois, período durante o qual muito tempo se perdeu em outras irrelevâncias ao gosto dos governantes da área, agarrados às suas “convicções” particulares e muito pouco abertos às necessidades reais das escolas.

Passo a um inventário curto dos mais evidentes inconseguimentos:

– Em relação aos alunos “mais desfavorecidos” de que alguns falam, embora em teses e com muita distância do seu real quotidiano e preocupações, a larga maioria dos que não tinham conseguido aceder ao E@D após Março, continuam sem equipamentos disponíveis, apesar de uma espécie de sprint trôpego para distribuir uma parcela curta a partir de meados de Dezembro. Os 100.000 kits tecnológicos são menos de metade do “essencial” para garantir que não aumentam as “desigualdades”. Se 20-25% dos alunos e famílias não tinham capacidade para seguir o ensino à distância há perto de um ano, isso implicaria, no mínimo, a disponibilização de 200 a 250.000 kits. Os dados mais recentes do Estado da Educação (edição de 2019) apontam para mais de 360.000 alunos com Apoios da Ação Social Escolar, com 13% (secundário) a 24% (2.º ciclo) dos alunos matriculados nos vários ciclos de escolaridade a beneficiar do escalão A/1.

– Em relação aos professores, terminou na segunda-feira a fase de diagnóstico das competências ou capacidades digitais. Os meses anteriores foram gastos na tradicional “formação de formadores”, tão cara a qualquer “projecto” nacional na área da Educação. Equipamentos para uma situação de ensino misto ou não-presencial que não passem pelos dos próprios professores? Até agora zero e parece que só haverá, em sistema de usufruto temporário, para quem frequentar as futuras formações que, por este andar, talvez estejam terminadas pela Páscoa, na melhor das hipóteses. Como em tantas outras ocasiões, muita preocupação em alimentar a “estrutura”, pouco empenho em chegar a tempo ao terreno. E mais interesse em veicular ideologia e demagogia do que em dar atenção ao que faz falta imperiosa no dia-a-dia dos docentes e escolas.

– E o que dizer do #EstudoEmCasa, que ainda anda a transmitir aulas que, pelos vistos, não servem para nada, excepto para compensar alguns serviços prestados à tutela e alimentar umas quantas vaidades, por muito mérito que tenham os colegas que por ali andam e tiveram a sorte de dar aulas um ano inteiro para as câmaras, sem o ruído da petizada e materiais para ver e classificar? Para que serve aquilo se, com uma interrupção das aulas presenciais, se esquece a sua existência, bem como dos laboriosos planos feitos em quase todos os agrupamentos e escolas não agrupadas para a eventualidade de se passar ao ensino misto ou não-presencial?

Parece evidente que nunca se pensou ser mesmo necessário encerrar as escolas e, portanto, tudo foi sendo feito com todo o vagar e a displicência que caracterizam aquilo que não se leva a sério e se vai fazendo porque enfim. Talvez o nervoso, irritação e teimosia do ministro Tiago (e do próprio primeiro-ministro) resultem da consciência de que, no caso de ser preciso passar para novo período de E@D, se perceberia com muita clareza tudo o que não foi feito apesar de gongóricas promessas ou que está a ser feito a um ritmo impensável, acaso fosse uma emergência bancária.

Preocupação com “os mais desfavorecidos”? Com “o agravar das desigualdades”? De palavras andamos fartos, de actos é que a mingua é forte.

Transição digital? Sim, mas devagarinho. Quiçá para uma 4.ª ou 5.ª vaga esteja tudo mais ou menos remendado. O século XXI terá de esperar mais um pouco.

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