O coração ainda bate. O centro comercial

As pessoas são também os lugares onde as vemos. Não precisamos de saber tudo delas para lhes sentir a falta. Os lugares vão ficando despidos das pessoas que sempre vimos, e um bocadinho de nós perde-se quando elas desaparecem.

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DANIEL ROCHA/DANIEL ROCHA

Um dia, um homem contou-me que sentira a pequenez da sua dimensão quando um grupo de notáveis a que pertencia, teve de se descalçar num aeroporto e, todos, ali descalços, ficavam estranhamente parecidos. Nem o dinheiro, nem o poder se fazia notar.

Florindo e Cristina têm aqui o mesmo papel. Inimaginável — pensaria a mulher que durante décadas o viu a engraxar sapatos. Florindo, garantem-me, fazia parte da história do centro comercial: era o engraxador de serviço. Ouvia muitas histórias contadas com os pés. Com elas também palmilhou o bairro de onde nunca saiu. Nesse bairro também morava Cristina. Era mais velha que Florindo. Fora a anestesista de Salazar e era isto que se murmurava de cada vez que ela entrava no cabeleireiro com a sua altivez que perdera força com a idade.

Durante anos vi Florindo sentado na esplanada do Centro Comercial fumando cigarros, uns atrás dos outros, pedindo moedas de forma discreta. Era possível vê-lo a ajudar mulheres de idade carregadas de sacos esperando depois a pequena gratificação. De moeda em moeda corria a comprar os pequenos rectângulos que esfregados traziam pouco mais do que a ilusão da sorte, mas isso não era importante: estava vivo. Distraía-se a ver cada par de sapatos que subia as escadas do Centro. Olhava primeiro para os pés, depois para a cara. Ficava a pensar no lustro que podia ali puxar, no cheiro a graxa que nunca lhe tinha saído do nariz mesmo que o tabaco teimasse em apagar esse rasto.

Lembro-me melhor de Florindo do que de Cristina, porque Cristina era esse eterno murmúrio que impunha respeito pela idade, pelo passado, pela dignidade que às vezes é só a teimosia de sair de casa para esconder o branco dos cabelos. Cristina jamais olharia para os pés de quem quer que fosse. Florindo habituou-se a olhar para baixo.

Estremeci quando me perguntaram: “Sabe quem morreu? O Florindo e a Dra. Cristina!” Eu nunca soube o nome do homem de cabelo grisalho com o bigode queimado pelos cigarros que lhe gastavam mais depressa o tempo. Nem me lembrava que Cristina, “a Dra. Cristina” tinha sido a anestesista de Salazar. Um e outro deixam agora de ser visita do Centro Comercial.

Há uns anos quando um amigo, com quem me cruzava ali na papelaria ou a beber um café, morreu, senti um estranho vazio por perceber que nunca mais o iria ver. As pessoas são também os lugares onde as vemos. Não precisamos de saber tudo delas para lhes sentir a falta. Os lugares vão ficando despidos das pessoas que sempre vimos, e um bocadinho de nós perde-se quando elas desaparecem.

Agora sei que nunca mais verei Florindo a fumar o tempo enquanto lançava um olhar de cobiça (ou desdém) pelos sapatos alheios, nem Cristina, na sua altivez amparada, a entrar no cabeleireiro para afastar as brancas da memória e os brancos do cabelo.

Na hora da morte, não importa de onde viemos, ficamos muito próximos; somos um nome: “Sabe quem morreu? O Florindo e a Dra. Cristina!” E é com o nome deles que os vejo de novo ocupando um lugar aonde já não voltarão. Provavelmente, Florindo terá engraxado sapatos no tempo em que Cristina era anestesista. Os olhos baixos dele e a altivez dela encontram agora um nível próximo. Na despedida.

Florindo e Cristina, um dia, couberam na mesma frase.

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