O exemplo de Stacey Abrams, lições da Geórgia para o mundo

Este combate pela salvaguarda democrática tem uma face decisiva. Uma política estadual, tornada heroína nacional: Stacey Abrams.

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Reuters/ELIJAH NOUVELAGE

As recentes eleições para o Senado norte-americano, a 5 de Janeiro de 2021, no estado da Geórgia, parecem ditar o fim de um longo processo eleitoral e de um ciclo de poder do Partido Republicano.

A vitória do pastor Raphel Warnock (o primeiro senador negro eleito neste estado) e de Jon Ossoff (o mais novo senador eleito, desde Biden, em 1973) assegura que a Câmara Alta do sistema biparlamentar estadunidense passe a ser composta por um número igual de senadores democratas e republicanos (50-50). Este empate técnico é ultrapassado pelo voto do líder do Senado, o vice-presidente do país. O poder de decisão confiado, então, a Kamala Harris marca o novo amanhecer democrata.

Ao longo dos anos, a Geórgia revelou-se um território ardiloso para o Partido Democrata. Com apenas pouco mais de 10 mil votos de diferença, Joe Biden conseguiu assegurar a primeira vitória numas presidenciais desde 1992, ano em Bill Clinton conseguiu o mesmo feito. A vitória azul, num estado classicamente vermelho, torna, indubitavelmente, o resultado de 5 de Janeiro mais notório. Mais curioso ainda é que esta abarca, em si, um significado que não se esgota apenas na eleição de Ossoff e Warnock, mas que a ultrapassa. A viragem democrata em 2020 foi produto de uma ampla campanha, com o objectivo de promover uma à ida às urnas, massificada, do eleitorado da Geórgia. Este combate pela salvaguarda democrática tem uma face decisiva. Uma política estadual, tornada heroína nacional: Stacey Abrams.

A história de Stacey confunde-se com a do seu país. A segunda de seis filhos, mudou-se, ainda criança, do Wisconsin, de onde é natural, para Atlanta, na Geórgia, para que os seus pais pudessem tirar um curso superior. Aluna brilhante, percebeu, desde cedo, a diferença da sua condição. O momento que rompeu com a ilusão de que vivia um mundo desprovido de diferenças ocorreu quando foi presenteada com um prémio de mérito estudantil, a ser oferecido numa reunião com o governador da Geórgia. No dia da cerimónia, foi impedida de entrar na residência oficial pelo porteiro, que afirmou que a jovem se equivocara na morada. Stacey percebeu que na cabeça do funcionário seria pouco provável que uma família negra, chegada de autocarro, tivesse uma audiência com o governador. E não se esqueceu.

Os anos passaram e Abrams tornou-se uma advogada conhecida e uma política de convicções fortes. Após servir na Casa dos Representantes do seu estado, pelo Partido Democrata, decidiu candidatar-se ao cargo de governadora, em 2018. Progressista, defensora de políticas socioeconómicas tradicionalmente atribuídas à esquerda, Stacey pretendia, acima de tudo, uma candidatura que representasse os cidadãos da Geórgia, vocalizando os problemas que enfrentavam. Stacey foi a votos contra o republicano Brian Kemp, o secretário-geral da Geórgia, em funções desde 2010.

Stacey não venceu as eleições de 2018. Kemp ganhou por uma diferença de apenas 55 mil votos, num total de 4 milhões. Mas o que a candidata derrotada estava longe de imaginar é que, apesar da derrota, acendera o rastilho de um processo de fortalecimento democrático. Durante a campanha, a congressista testemunhou, atónita, uma tapeçaria legislativa e logística complexa que servia de entrave ao voto a muitos cidadãos, afectando, maioritariamente, jovens universitários, minorias étnicas e as camadas pobres da Geórgia.

A (re)instituição destes entraves foi possível, devido a uma decisão do Supremo Tribunal dos EUA em 2013. A deliberação dos juízes no caso Shelby County v. Holder reverteu uma proibição que impedia os estados de mudar as suas leis eleitorais sem autorização. A supressão de eleitores tornara-se um mecanismo, útil e legal para a manutenção, no poder, das figuras que classicamente o detinham. Nas ruas, Stacey destapou um conjunto de medidas, obscuramente implementadas pelo poder republicano do estado, nos últimos anos: restrição (e complexificação) dos documentos passíveis de servirem de identificação do eleitor, purgas dos cadernos eleitorais repentinas, com justificações dúbias, eliminação de vários postos de votos (obrigando a árduos deslocamentos no dias das eleições), subfinanciamento no apoio humano/logístico no dia das eleições (com resultados em filas intermináveis e várias máquinas de votos avariadas) e, ainda, proibição de votos a ex-condenados. Stacey Abrams sentiu-se incapaz de ajudar determinadas comunidades a ultrapassar estes obstáculos, a tempo da eleição de governador. Ainda hoje, afirma que Brian Kemp, como secretário de Estado, possibilitou, em 2018, o bloqueio do voto de 53 mil eleitores, 70% dos quais afro-americanos.

Stacey perdeu o primeiro embate, mas percebeu que o derradeiro combate estava apenas a começar. Finda a eleição, criou o New Georgia Project, uma organização com fins não lucrativos que se dedicou a registar eleitores excluídos pelo sistema: uma vez mais, jovens, mulheres, afro-americanos, hispânicos, ex-condenados. Todos os que nunca se sentiram impactados por quem os lidera. Stacey e a sua organização certificaram-se que todos teriam os registos nos cadernos eleitorais em dia, a documentação requerida, que todos conheceriam os locais de votos e que teriam como lá chegar. Certificaram-se, no fundo, que os votantes sabiam que o poder para decidir sobre as suas vidas dependia, em última análise, dos próprios. E em 2020, o New Georgia Project registou mais de 800 mil novos votantes. E os resultados foram palpáveis, culminando num ponto de viragem, para a Geórgia e para o país. Com a vitória de Biden e, mais tarde, a eleição dos dois senadores democratas.

Confesso que, para mim, esta é uma história que necessita de ser partilhada. Porventura sem se aperceber, a Geórgia relembrou ao resto do mundo o que, em tempos distorcidos pelas trevas, se teima em esquecer. Que se nos mantivermos atentos, e motivados, é pela participação eleitoral, activa, que podemos canalizar as mudanças que as nossas realidades necessitam. Isto é, que o garante de um sistema democrático, plural e inclusivo depende exclusivamente de quem a este se destina.

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