Em defesa do ensino da Medicina: três argumentos para discordar da posição da Comissão Nacional de Proteção de Dados

O parecer da CNPD que impede o acesso de estudantes de Medicina aos dados clínicos dos doentes consubstancia um claro retrocesso para o ensino da Medicina em Portugal.

Quando a Comissão Nacional de Proteção de Dados (adiante CNPD) deliberou desaplicar um conjunto de normas da lei que assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento Geral de Proteção de Dados (doravante RGPD), não efetuou qualquer reparo ao alargamento do universo de pessoas com a possibilidade de acesso a dados relativos à saúde (não o restringindo apenas aos profissionais de saúde, desde que obrigadas a um dever de sigilo.

O RGPD considera lícito o tratamento de dados relativos à saúde de uma pessoa para a prestação de cuidados ou tratamentos de saúde, se os dados forem tratados por ou sob a responsabilidade de um profissional sujeito à obrigação de sigilo profissional − nos termos do Direito da União ou dos Estados-membros ou de regulamentação estabelecida pelas autoridades competentes −, ou por outra pessoa igualmente sujeita a uma obrigação de confidencialidade ao abrigo do Direito da União ou dos Estados-membros ou de regulamentação estabelecida pelas autoridades nacionais competentes. Esta obrigação de confidencialidade, sendo extensiva a todas as pessoas que intervenham em qualquer operação de tratamento de dados, surge reforçada quando estabelece que os estudantes e investigadores na área da saúde e todos os profissionais de saúde que tenham acesso a dados relativos à saúde estão obrigados a um dever de sigilo – dever de sigilo previsto na lei nacional de execução do RGPD, que acresce àquele dever de confidencialidade.

No nosso entender, o parecer da CNPD que impede o acesso de estudantes de Medicina aos dados clínicos dos doentes não teve em consideração três aspetos essenciais.

Em primeiro lugar, a informação de saúde abrange todo o tipo de informação direta ou indiretamente ligada à saúde, presente ou futura, de uma pessoa, quer se encontre com vida ou tenha falecido, e a sua história clínica e familiar. Os atuais estudantes de Medicina serão futuros médicos em unidades de saúde públicas e/ou privadas, e é óbvio que uma adequada preparação para a prática clínica pressupõe, necessariamente, o estudo e acompanhamento de casos concretos.

Em segundo lugar, a lei nacional de execução do RGPD teve a preocupação de acautelar que, para além de o acesso a dados pessoais de saúde ter que respeitar o princípio da necessidade de conhecer a informação, o titular dos dados deverá ser notificado de qualquer acesso realizado aos seus dados pessoais – cabendo ao responsável pelo tratamento assegurar a disponibilização desse mecanismo de rastreabilidade e notificação. Desta forma, caso o titular dos dados pretenda opor-se e/ou fazer cessar o acesso aos seus dados de saúde pelos estudantes de Medicina, terá sempre ao seu alcance a faculdade de exercer o(s) seu(s) direito(s) nesse sentido.

Por último, a lei da informação genética pessoal e informação de saúde refere expressamente que os responsáveis pelo tratamento da informação de saúde devem tomar as providências adequadas à proteção da sua confidencialidade, garantindo a segurança das instalações e equipamentos, o controlo no acesso à informação, bem como o reforço do dever de sigilo e da educação deontológica de todos os profissionais − o que resulta, manifestamente, das preocupações evidenciadas pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, ao submeter a parecer da CNPD o Protocolo a ser celebrado com o Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E e os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E (SPMS).

Pelo que, não podemos deixar de subscrever as observações do coordenador do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), Henrique Cyrne de Carvalho, quando entende que a apreciação da CNPD consubstancia um parecer “cego e desconhecedor da realidade” da formação médica em Portugal, e um claro retrocesso para o ensino da Medicina.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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