O Governo do “Brexit” de Boris Johnson não teve mãos para controlar a covid-19

No ano em que enfrentou o duplo desafio de retirar o Reino Unido do espaço económico europeu e lutar contra a pandemia, a covid-19 foi o adversário mais forte do primeiro-ministro britânico.

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Manifestante anti-Brexit junto ao Parlamento em Londres LUSA/FACUNDO ARRIZABALAGA

Podia ter sido um dia de glória para o Governo conservador britânico de Boris Johnson, ao fazer aprovar o acordo comercial pós-“Brexit” com a União Europeia no Parlamento. Mas ficou marcado pelo pânico com a variante do coronavírus detectada poucos dias antes do Natal, quando o Governo ainda falava em abrandar as restrições e deixar que várias famílias se juntassem para comemorar. Foi o segundo dia em que os novos casos de covid-19 ultrapassaram os 50 mil, e o ministro da Saúde teve de anunciar novas restrições na maior parte do país.

Como chegou aqui o Reino Unido, que com o “Brexit” pretendia “retomar o controlo”?

A gestão da pandemia de covid-19 no Reino Unido tem sido marcada por problemas políticos desde o início. Um Governo constituído como uma força especial para “fazer o ‘Brexit’” teve de lidar com uma enorme crise de saúde, para a qual não estava preparado, e chumbou em várias provas.

A variante do coronavírus que preocupa as autoridades de saúde – VOC 202012/01, diz um estudo da Public Health England – tornou-se a maioria substancial das amostras de vírus sequenciadas no Reino Unido em Dezembro. Embora esta variante não cause uma doença mais grave, nem aumente o número de mortos, outro estudo deste organismo diz que parece aumentar a carga viral: 35% das amostras de pessoas infectadas apresentavam níveis elevados de partículas do coronavírus. Julga-se, por isso, que estará a contribuir para que o número de novos casos diários seja o maior de sempre no Reino Unido.

Isto fará também com que o ensino presencial não seja retomado em Janeiro em todo o lado, anunciou o ministro da Educação, Gavin Williamson. Será lançada também uma campanha de testes destes alunos, pois há muitos casos de covid-19 nesta faixa etária. 

Vacina nacionalista

A aprovação da vacina da Universidade de Oxford-AstraZeneca pela agência reguladora britânica, no mesmo dia em que o Parlamento votou o acordo comercial com a União Europeia, e quando subsistem ainda muitas dúvidas sobre a verdadeira eficácia desta vacina, está tingida de tons nacionalistas em tempos de “Brexit”.

O ministro da Saúde, Matt Hancock, comparou no Parlamento esta vacina com a descodificação do código das máquinas Enigma alemãs na II Guerra, antes de anunciar o alargamento geográfico do nível 4 de restrições, o mais grave. Zonas como Liverpool, que se mantinham no nível 2, foram elevadas para o 3. Há 21 mil pessoas internadas.

Mas esta prova de confiança na vacina britânica é ao mesmo tempo um gesto temerário. Nem a Food and Drug Administration norte-americana, nem a Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla em inglês) se mostram dispostas a aprovar já a vacina da Universidade de Oxford-AstraZeneca, que teve erros e incoerências durante os ensaios clínicos.

Estão ainda a decorrer mais ensaios clínicos nos Estados Unidos, para esclarecer qual a eficácia da vacina – que oscila entre 62% e 90%, consoante o tipo de ensaio – e não deverá haver resultados antes de Fevereiro. E a AstraZeneca ainda nem apresentou à EMA um pedido de autorização para comercialização de emergência da vacina.

"Chumocracy” e confiança

Para o Governo britânico, o desafio agora é de reconquistar a confiança dos cidadãos, fortemente abalada por vários casos. O Governo de Boris Johnson ganhou uma aura de incompetência, notava a revista The Economist em Setembro.

Logo no início da pandemia, houve uma dramática falta de material de protecção individual do pessoal médico. Mas os problemas do sistema de rastreamento de casos de covid-19, que foi privatizado, arrastaram-se durante meses. Houve incapacidade de coordenação com os vários níveis da administração pública e problemas informáticos que levaram a uma subnotificação de dezenas de milhares de casos. A falta de testes também foi duradoura, com pessoas a serem mandadas fazer o teste de despistagem a mais de 400 km de distância.

No fim do Verão, quando os casos de covid-19 começavam a subir outra vez, enquanto o Governo tentava convencer os cidadãos a voltar aos locais de trabalho, as sondagens mostravam que a sua popularidade tinha resvalado. Foi nas cidades do Norte de Inglaterra que os surtos de covid-19 ressurgiram, e o Governo comprou conflitos com os presidentes da câmara, ao impor confinamentos. Dominic Cummings, o poderoso conselheiro de Johnson, que resistiu ao escândalo de ter violado o confinamento na Primavera, abandonou o Governo em Novembro. 

No início de Dezembro, um relatório do National Audit Office, um organismo parlamentar independente que audita departamentos e agências governamentais britânicos, revelou algo descrito pelos media como o fenómeno da “chumocracy” na pandemia, que talvez se possa descrever como o amiguismo.

Floresceu uma classe dirigente em torno das entidades ligadas à covid-19 formada por pessoas da mesma classe social, que passaram pelas mesmas universidades e frequentam os mesmos meios sociais, que se nomearam uns aos outros para cargos, ou atribuíram empreitadas relevantes para a covid-19, como fornecimento de materiais de protecção. Contratos que valiam mais de 19 mil milhões de euros foram atribuídos entre Março e Julho, muitos sem concurso público e a pessoas próximas do ministro da Saúde, diz o relatório.

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