Em França, a covid-19 na Primavera foi mais grave do que a gripe em 2018/2019

Estudo mostra que a taxa de letalidade da covid-19 nos doentes internados em França na Primavera foi três vezes maior do que a da gripe da época de 2018/2019, a pior dos últimos cinco anos naquele país em termos do número de mortes.

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Nos cuidados intensivos num hospital em França durante a segunda vaga de covid-19 Benoit Tessier/Reuters

Uma equipa de cientistas analisou dados de mais de 130 mil doentes hospitalizados em França com covid-19 ou com gripe para saber qual a gravidade destas doenças. Num estudo publicado esta quinta-feira na revista The Lancet Respiratory Medicine, revela-se que foram internadas na Primavera deste ano quase mais do dobro de pessoas com covid-19 do que as que tinham gripe na época de 2018/2019. Viu-se ainda que houve uma maior proporção de doentes com covid-19 com casos graves e que precisaram de ir para os cuidados intensivos do que os doentes com gripe. Portanto, concluiu-se que nos doentes internados a covid-19 foi mais grave do que a gripe. Os investigadores notam que as diferenças podem ser, em parte, justificadas pela imunidade para a gripe já existente na população. 

Neste estudo compararam-se dados de doentes com covid-19 hospitalizados entre 1 de Março e 30 de Abril de 2020 com dados de doentes com gripe entre 1 de Dezembro de 2018 e 28 de Fevereiro de 2019. Estes dados foram retirados da base de dados administrativa nacional francesa, que inclui informações de todos os doentes admitidos nos hospitais públicos e privados em França. Através desta base de dados, também se consegue saber a razão pela qual foram internados e que cuidados receberam.

No período estudado, verificou-se logo que foram hospitalizados quase mais do dobro de doentes com covid-19 (contabilizaram-se 89.530) do que doentes com gripe (45.819). No geral, viu-se que a doença foi mais grave nos pacientes com covid-19 do que com gripe. Ao todo, 14.585 (ou seja, 16,3%) pessoas com covid-19 precisaram de ir para os cuidados intensivos. Já 4926 (10,8%) pacientes com gripe foram para os cuidados intensivos.

Quantos aos cuidados recebidos no hospital, viu-se que precisaram de ventilação mecânica mais do dobro dos doentes com covid-19 (8684, o que equivale a 9,7%) do que com gripe (1833, o que representa 4%). Os doentes com covid-19 também passaram mais tempo nos cuidados intensivos do que os que tinham gripe: enquanto os infectados com covid-19 passaram aí, em média, 15 dias, as pessoas com gripe ficaram cerca de oito dias.

E não ficou por aqui. Por um lado, mais de um em quatro doentes com covid-19 (ao todo, foram 24.317) teve insuficiência respiratória aguda. Por outro lado, isso aconteceu em um em cada cinco pacientes com gripe (7977). As doenças subjacentes mais comuns entre os infectados com covid-19 foram a elevada pressão arterial (29.622), a diabetes (17.050) e o excesso de peso ou obesidade (10.116).

A taxa de letalidade da covid-19 também foi quase três vezes maior do que a da gripe. Das pessoas internadas no hospital, morreram 15.104 com covid-19 (16,9%) e 2640 com gripe (5,8%).

Qual a gravidade nas crianças?

Há ainda dados sobre as crianças. Observou-se que foram menos as crianças com idade inferior a 18 anos com covid-19 (1227, o que corresponde a 1,4%) do que as que tinham gripe (8942, 19,5%). Mas, relativamente às crianças com menos de cinco anos, foram mais as que precisaram de cuidados intensivos com covid-19 (14 em 613) do que as que tinham gripe (65 em 6973). A taxa de letalidade neste grupo foi baixa tanto na covid-19 (0,5%) como na gripe (0,2%). Só na faixa dos 11 aos 18 anos é que essa diferença foi maior: se na covid-19 foi de 1,1%, na gripe só chegou a 0,1%.

Num comunicado sobre o artigo, a equipa nota que “diferenças nas taxas de hospitalização podem ser, em parte, devido à imunidade existente para a gripe na população”, o que é já um resultado da vacinação e de infecções anteriores. Já para a covid-19 ainda não se atingiu essa imunidade de grupo. Como tal, para os autores do trabalho, estes resultados reforçam a importância das medidas para evitar ambas as doenças.

O nosso estudo é o maior até à data ao nível da comparação das duas doenças [nos doentes hospitalizados] e confirma que a covid-19 é bem mais grave do que a gripe”, afirma em comunicado Catherine Quantin, investigadora Instituto Nacional da Saúde e Investigação Médica (Inserm), em França, e líder do trabalho. E destaca ainda: “A descoberta de que a taxa de letalidade da covid-19 foi três vezes maior do que a da gripe sazonal é particularmente surpreendente, porque a época da gripe de 2018/2019 foi a pior dos últimos cinco anos em França em termos do número de mortes”. 

Por sua vez, Pascale Tubert-Bitter (também cientista no Inserm e líder do estudo) assinala: “Os nossos resultados indicam claramente que a covid-19 é muito mais grave do que a gripe sazonal. Este estudo destaca a importância de todas as medidas de prevenção físicas e de vacinas eficazes.”

O investigador Eskild Petersen não participou neste estudo, mas considera que este não apresenta enviesamentos e que a amostra é um dos seus pontos fortes. “Os resultados mostram claramente que a covid-19 foi mais grave do que a gripe sazonal”, refere o cientista da Universidade de Aarhus, na Dinamarca.

Os autores do trabalho não deixam de assinalar que há algumas limitações. Por exemplo, notam que as práticas de testagem para a covid-19 estão mais padronizadas do que as da gripe, o que pode levar a algum aumento dos doentes com covid-19 internados. Embora se considere que a época da gripe 2018/2019 tenha sido a mais grave nos últimos cinco anos em França, também não se sabe se é representativa de todas as épocas de gripe.

Catherine Quantin assinala ao PÚBLICO que os dados utilizados são exaustivos, mas são pequenos comparados com todo o universo de doentes hospitalizados de outros países. “É preciso ter cuidado a interpretá-los e poderia ser útil recolher mais dados de outros países.” Aqui poderia colocar-se outro problema: a heterogeneidade de fontes de informação e das populações. Mesmo assim, a cientista adianta que teria muito gosto em colaborar com investigadores de países como Portugal, que têm dados hospitalares semelhantes aos de França.

Neste momento, a sua equipa tem vários trabalhos (mais ou menos) relacionados com este. Concretamente, está a analisar com mais detalhe e do ponto de vista clínico as diferenças entre a gripe e a covid-19.

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