Atividade programada, uma história perdida

Com melhor organização e financiamento adequado, será possível alcançar ganhos no controle da pandemia e dar resposta ao problema da atividade programada não efetuada.

Uma das alterações que a crise sanitária trouxe ao SNS prende-se com a interrupção ao normal funcionamento das unidades de saúde em prol do esforço de responder àquele que, nos últimos meses, se afirmou como problema mais urgente. No entanto, e pese a gravidade associada aos casos de covid-19, a atividade programada não efetuada representa um risco crescente para a saúde de todos que tem de ser encarado, constituindo um fator que mina a confiança do cidadão nas instituições e agrava as desigualdades em saúde na população.

Segundo informação oficial divulgada no final do mês de outubro, já com o esforço para recuperar os atos não efetuados ainda estariam por realizar 600 mil consultas de especialidade e cerca de 100 mil cirurgias. Por não cobrirem alguns indicadores que permitem compreender a real dimensão da atividade não realizada, estes dados são pouco rigorosos sobre a realidade que pretendem descrever. Este motivo levou-nos a ensaiar um levantamento do impacto da pandemia na atividade programada não efetuada, através da análise da sua evolução mensal dos dados disponibilizados pelo portal da transparência SNS e sua comparação com os últimos quatro anos.

Neste trabalho, publicado no portal healthnews, concluímos que a situação a 30 de setembro poderá ser um pouco mais complicada do que os dados de outubro de 2020 fazem crer, com os números de cirurgias, consultas realizadas e de utilização de meios complementares de diagnóstico a evidenciarem uma acentuada e perigosa redução em relação à média de produção dos últimos quatro anos.

A resposta a esta redução tem de ser prioritária e implica rever algumas das opções até agora seguidas. As políticas públicas de saúde têm de ir ao encontro das necessidades dos cidadãos e cidadãs. Neste sentido, estranha-se que a proposta de reforço orçamental para o SNS atinja apenas os quatro milhões de euros em relação a 2020. É um valor claramente insuficiente, que não comporta inclusive o acréscimo de custos que tratar e gerir as doenças sofreu pelo impacto da covid. Atualmente, não há nenhum procedimento que não tenha encarecido porque é necessário utilizar mais equipamentos de proteção individual, realizar teste prévio ou instituir circuitos duplicados e separados.

A organização do SNS deve ser repensada. Aos cuidados primários terão de ser garantidos recursos e possibilidade de reorganização para melhore cumprirem o seu papel de entrada no sistema e de alívio das unidades mais diferenciadas. Quanto à resposta hospitalar, além do necessário reforço de meios, há que repensar o conceito de rede. Por exemplo, nas áreas metropolitanas seria possível criar hospitais covid e não covid, procurando desta forma alcançar ganhos de eficiência de produção, que ajudariam à manutenção da atividade programada e recuperação da atividade programada. O reforço dos recursos humanos disponíveis, garantindo capacidade de contratação, condições de trabalho e vínculos estáveis e duradouros tornou-se ainda mais premente. Além disso, este é o momento ideal para se refletir na reintrodução no SNS de um regime de exclusividade.

A teoria económica diz-nos que quando permitimos que os mesmos profissionais acumulem atividade nos setores público e privado as listas de espera não só não diminuem como tendem a agravar-se. A exclusividade afigura-se, portanto, como uma escolha lógica, se obviamente acompanhada da necessária compensação salarial a quem por ela opte, podendo garantir mais horas de presença dos profissionais nas instituições. Feitas as contas, o cidadão veria reforçadas as condições de acesso aos cuidados, os profissionais teriam acréscimo salarial e, muitos deles, redução de deslocação entre instituições e maior facilidade em conciliar trabalho num só local, ainda que com horário acrescido, com vida familiar e, por fim, o próprio Estado, que poderia por esta via reduzir os encargos com os prestadores privados, empresas de trabalho temporário e horas extraordinárias, reduzindo o risco de infeções cruzadas e aumentando a sua autonomia e eficiência.

Passados nove meses desde que o primeiro caso de covid foi diagnosticado em Portugal, continuamos a insistir na ideia de que é fundamental trabalhar para confinar o vírus, não as pessoas. A covid é um problema sério que tem de ser controlado, mas não podemos permitir que as restantes atividades continuem a ser adiadas, tantas vezes com efeitos dramáticos ou irreversíveis. Com melhor organização e financiamento adequado, será possível alcançar ganhos no controle da pandemia e dar resposta ao problema da atividade programada não efetuada.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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