O Coração ainda bate. Vila Corina

A fotografia foi encontrada entre os escombros daquilo que foram anos e anos de ensino num lugar especial. Era uma mansão do século XIX tão intrigante como a minha vontade de a conhecer.

Foto
"A Vila Corina é o lugar mais intrigante por onde alguma vez passei" Davide Sibilio/Unsplash

 

Olho para a parede em frente e vejo a fotografia onde muitas vezes me confundi com a minha filha. A mesma cara, outros anos. A fotografia devolve-me um passado vivido num lugar aonde sempre voltarei perigosamente: a memória é o lugar mais armadilhado e parecido com uma teia. Há quem nunca de lá saia.

A fotografia foi encontrada entre os escombros daquilo que foram anos e anos de ensino num lugar especial. Era uma mansão do século XIX tão intrigante como a minha vontade de a conhecer. Eu sabia que um dia lá iria parar. Todas as manhãs, ao pequeno-almoço, olhava para o vitral que sobressaía da casa com cobertura de azulejos azul-bebé. “Vila Corina”, outrora a casa de alguém, um dia, muito mais tarde, uma escola: o Ciclo Preparatório.

Na fotografia já tenho ali um involuntário sorriso de Gioconda. Nunca feliz, nunca exactamente triste. Uma imprecisão sentimental que me acompanhou a vida fora. A fotografia encontrada na Vila Corina foi devolvida à casa onde cresci: morávamos a poucos metros desse lugar mágico, perigosamente mágico na minha memória. Lembro-me do instante em que subi a escadaria que dava acesso à casa que era o Ciclo: tinha 9 anos e medo de quase tudo, mas queria saber como era o lugar misterioso que avistava da minha cozinha na monotonia de um pequeno-almoço que nunca questionei. Noutros anos, passámos a infância sem questionar. Sem a hipótese de fazer escolhas.

A fotografia foi devolvida à minha mãe: a mesma fotografia que décadas antes ela me obrigara a pedir ao rapaz que disse gostar de mim: era o João Paulo, o rapaz mais bonito da Vila Corina que um dia me fez chegar uma fotografia sua e um recado por mão amiga: “o João Paulo gosta de ti”, uma declaração atirada sem aviso prévio na minha cara não necessariamente triste, não obviamente feliz. Apenas segundos da minha existência em que estranhei ser escolhida. A escolhida. Na resposta, de mão trémula, fui à carteira onde já não devia ter os 20 escudos da semanada e tirei também a minha fotografia: esta, a que está na minha parede, a que foi devolvida décadas depois à minha mãe encontrada entre os escombros do Ciclo. Esta, a que a minha mãe me obrigou a pedir de novo quando soube que a tinha dado a um rapaz. É sempre esta.

A Vila Corina é o lugar mais intrigante por onde alguma vez passei. E estava ao lado de minha casa. E eu que lá passei dois anos, não me dediquei suficientemente à sua descoberta porque há idades que não permitem ir mais longe: ainda não têm perguntas que cheguem. As minhas perguntas empurravam-me só para as escadas da secretaria a descobrir que naquele lugar, onde um dia alguém morou, havia palmeiras, estábulos, um tanque para mergulhos na infância, um court de ténis, tectos pintados à mão onde aprendi os ventrículos e as aortas sem saber que o coração não se cingia ao que se pode ver.

A fotografia mora na minha parede. Foi do João Paulo poucos dias. Foi da Vila Corina muitos anos. Sobreviveu à minha saída. Foi um dia devolvida à minha mãe e, eu, ampliei-a para alargar o meu passado.

A Vila Corina, forrada a azul-bebé com o vitral que era a sala de música onde senti pela primeira vez um tremor de terra, ainda existe: em sonhos quero comprá-la e fazer dela minha. Ficou ao abandono como se ninguém estivesse preparado para tanta beleza. Às vezes não estamos. Nem sabemos lidar com ela.

Quando volto à casa que já não é minha, ainda vejo a Vila Corina. O vitral resiste já sem música. A fotografia na casa que agora é minha leva-me todos os dias até lá.

Perigosamente na nossa memória.

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