Turquia: 337 condenados a prisão perpétua por envolvimento no golpe de 2016

Quatro anos depois, o golpe falhado continua a ensombrar Erdogan e os turcos, num regime que tem respondido à dissidência e à crise económica com repressão interna e aventuras externas.

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A segurança junto à prisão de Sincan, complexo onde foi construída uma enorme sala de audiências para este processo EPA
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Respondendo ao apelo de Erdogan, muitos turcos saíram à rua na noite de 15 de Julho de 2016 para ajudar a travar os golpistas Tumay Berkin/Reuters

A Justiça turca condenou nesta quinta-feira 337 antigos pilotos e outros suspeitos a prisão perpétua pela tentativa de derrubar o Presidente, Recep Tayyip Erdogan, a 15 de Julho de 2016. Trata-se do maior processo contra suspeitos de envolvidos no golpe falhado que o líder turco viu como um ataque existencial e que moldou grande parte da sua acção nos últimos anos.

Entre os 475 acusados há comandantes do Exército e muitos pilotos da Força Aérea, que terão sido responsáveis por dirigir o golpe a partir da base aérea de Akinci, perto de Ancara, ordenando o bombardeamento de edifícios governamentais, como o Parlamento, e tentando assassinar Erdogan. Só dez são civis, incluindo seis julgados em ausência e quatro considerados cabecilhas: os “imãs civis”, como são referidos no processo, tinham laços ao movimento social e religioso Hizmet (serviço), de Fethullah Gülen, que o regime responsabilizou pelo golpe.

Gülen, ex-aliado de Erdogan, que vive na Pensilvânia (Estados Unidos) e sempre desmentiu qualquer papel no golpe que fez 251 mortos (a maioria civis que enfrentaram os golpistas) e deixou 2000 feridos, foi um dos seis julgados em ausência. Defensor de um islão moderado e da separação entre política e religião, ergueu um movimento com milhões de seguidores e uma rede de escolas e universidades em 160 países. Pelo meio, a proximidade a Erdogan levou gulenistas a posições importantes no Exército ou na Justiça.

O “presente do céu”, como o Presidente turco chegou a descrever o golpe falhado, serviu de pretexto para purgas em massa nos tribunais, universidades, jornais ou quartéis, com 20 mil militares afastados. Pelo menos 150 mil funcionários públicos foram despedidos ou suspensos.

Segundo o ministro do Interior, Suleyman Soylu, 292 mil pessoas foram detidas por suspeita de laços a Gülen e destas quase 100 mil aguardaram ou aguardam pelo julgamento na prisão. Mais de quatro anos depois, as operações contra suspeitos gulenistas ainda são frequentes e há dez julgamentos a decorrer.

"Pragmatismo implacável"

Desde então, Erdogan aliou-se aos nacionalistas da direita radical (MHP) e fez aprovar uma reforma à Constituição que tornou a Turquia num regime presidencialista e lhe permitiu concentrar enormes poderes. A par de condenações de activistas e jornalistas, nos últimos meses foi aprovada uma lei que dá novos poderes ao Governo para regular as redes sociais e é vista como um reforço à censura no país.

Passado o efeito “anestesia” em que o golpe mergulhou a maioria da oposição, em 2019 Erdogan viu o seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) perder eleições municipais importantes, em Istambul e Ancara, muito por culpa da inflação galopante.

Em resposta, exacerbou a narrativa das ameaças externas e lançou-se em várias aventuras militares: na Líbia ou no Nagorno-Karabakh, onde apoiou o Azerbaijão, enquanto arriscava um confronto com a Grécia ao enviar navios para o Mediterrâneo Oriental, onde reservas de hidrocarbonetos animam disputas de soberania. Ao mesmo tempo, aproveitou um discurso de Emmanuel Macron sobre a ameaça do islão político e a republicação das polémicas caricaturas de Maomé para se lançar numa guerra de palavras com o Presidente francês e cimentar o seu papel de líder do mundo muçulmano.

Em parte, a crise económica sem tréguas deve-se às suas opções e à confiança cega que depositava em Berat Albayrak, o genro que em 2018 nomeou ministro das Finanças e do Tesouro. Tudo mudou este mês, com Albayrak a apresentar a demissão um dia depois de Erdogan ter substituído o governador do Banco Central por um crítico das suas políticas. Um episódio, escreve o Financial Times, que “lembra o pragmatismo implacável de um homem para quem manter o poder ainda parece mais importante do que qualquer coisa”.

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