A Terra é redonda, porra!

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Se não temos a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, então, por definição, o mercado de ideias não funciona. E, por definição, a nossa democracia não funciona.” Barack Obama, ex-Presidente dos Estados Unidos

Começaram por demonizar Obama

Barack Obama acaba de publicar um livro de memórias sobre a sua presidência, precisamente na altura em que um republicano dá lugar a um novo democrata na Casa Branca, o seu vice, Joe Biden. O livro estende-se por 850 páginas (na tradução portuguesa) e é também uma reflexão sobre o tempo que vivemos e o que nos levou a estes dias de disrupção em que tudo é posto em causa, das vacinas ao redonda que é a Terra. Em entrevista à The Atlantic, o ex-Presidente dos Estados Unidos afirma que estamos “a entrar numa crise epistemológica” – sem capacidade para distinguir a verdade da mentira, questionamos o conhecimento adquirido, pomos em causa factos como se fossem opiniões e defendemos opiniões como se fossem factos. A discussão deixa de ser uma troca de ideias para se transformar num combate de posições diametralmente opostas que se enfrentam à distância e quem tenta acercar-se do campo oposto para perceber a perspectiva do outro, construir pontes, encetar diálogos, acaba destruído pelos bombardeamentos. O ex-Presidente diz que, durante a sua presidência, o Partido Republicano “descobriu ser vantajoso politicamente” demonizar Obama e ao Partido Democrata: “Os seus eleitores acreditavam nisto e, com o tempo, os republicanos tiveram tanto êxito nessa demonização que se tornou muito difícil chegarem a algum compromisso ou até serem cordiais.” E, à distância, Obama aponta a escolha da então governadora do Alasca, Sarah Palin, para candidata a vice-presidente do senador John McCain, o senador republicano que derrotou em 2008 na corrida à Casa Branca, como o primeiro sinal de que o Partido Republicano estava a escolher para si uma camisa-de-onze-varas ideológica.

Hélas! A conspiração, a conspiração

Foi feito para demonstrar com alegados factos que a pandemia de covid-19 não existe e se trata apenas de mensagens e manipulações criadas pelos governos para controlar as populações e restringir os seus direitos. Por mais que a premissa de Hold Up – o documentário de quase três horas lançado em França no dia 11 de Novembro e que se já se tornou um fenómeno – seja uma pretensa verdade escondida que é preciso revelar, como se o mundo funcionasse com base num argumento escrito por um qualquer omnisciente Dan Brown, aquilo que os jornalistas franceses que já o viram dizem é que se trata de mais um exemplo de desinformação a que o género nos habituou. Distorce factos, inventa ligações entre argumentos ao acaso, dá voz a “especialistas” questionáveis, tudo para chegar ao habitual pão para a boca dos adoradores do género: há uma conspiração das elites para nos enganar. Como escreve a revista Marianne esta semana, está realizado de “forma hábil por antigos colaboradores da televisão pública francesa, usando todos os códigos das emissões televisivas de investigação”. Partindo de questões pertinentes sobre o uso de máscaras, as medidas de confinamento, os testes, Pierre Barnérias, ex-jornalista do Ouest-France, constrói toda uma teoria baseada em fontes documentais duvidosas. “Se alguns documentos são citados correctamente, muitos deles são distorcidos para dizer o que não dizem e, às vezes, até o contrário do que dizem”. Como diz o filósofo Mathias Girel, em entrevista ao Libération, “não são as questões que fazem as conspirações, mas a maneira como lhe dão uma resposta”. E Hold Up é uma resposta à medida da pandemia: uma conspiração mundial “para subjugar a humanidade”. Hèlas, como exclamam os franceses.

Já Chega de sofismas

Neste tempo em que o homem do perdigoto que barafustava no café contra “todos esses corruptos” ganhou aparentemente quem o ouve; em que o taxista indignado com os imigrantes, os ciganos, os pretos e “toda essa corja que vem para aqui viver à custa do que é nosso” conseguiu quem pretensamente o entende; em que qualquer oportunista sem o mínimo de escrúpulos se aventura na banha da cobra política e arregimenta uns perigosos fascistas disfarçados de democratas para formar um partido; neste tempo, dizia, em que se confunde liberdade de expressão com ataques gratuitos e insultuosos a seres humanos e instituições como forma dita frontal de intervir no espaço público, percebemos que todo este discurso político de suposta limpeza de um sistema podre não é mais do que uma montagem para enganar tolos. Sem deixar de ser perigoso, é falso como essa Kaweseki de fabrico chinês omnipresente em muitos países africanos. Veja-se o que o analista político peruano Lolo Echverría escreve no El Comércio e se o mesmo não se podia dizer sobre o Portugal do Chega, os EUA de Trump, a Hungria de Orbán. “Na era das redes sociais não existe político respeitável (…) nenhum faz nada, todos são iguais” e fazem parte “de uma trama ao mais alto nível, nacional ou transnacional, que infunde temor porque parece a encarnação do mal”. Como tal, “há que pintá-los como parte de uma conspiração para assustar os eleitores”. Na política, “aquilo que não é delírio é sofisma” e quando os políticos “não são capazes de desmontar o sofisma, terão que inventar uma conspiração”. E este é tempo de conspirações.

Liberdade

Abraham Lincoln, que foi um Presidente republicano assassinado por extremistas de direita, dizia que quem nega a liberdade dos outros não merece a liberdade. E que nos vejamos em pleno século XXI a relembrar uma ideia de meados do século XIX para sublinhar o que devia ser óbvio é também um reflexo de como hoje se distorce o conceito de liberdade ao ponto de esta poder incluir o condicionar da liberdade de alguém. A manifestação desta semana em Berlim, frente ao Bundestag onde os deputados discutiam a Lei de Protecção contra as Infecções, relembra como muitos se apropriaram da ideia da liberdade para agrilhoar as medidas de saúde pública, sem que em nenhum momento essas pessoas questionem que raio de liberdade é essa que nos faz arriscar a vida dos outros em nome de um qualquer direito inalienável a sermos uma espécie de “bom selvagem” moderno, vivendo numa liberdade total que nunca tivemos antes. Lado a lado, comerciantes que pensam no seu negócio, teóricos da conspiração, extremistas de direita, defensores dos animais, negacionistas e até veganos (havendo quem fizesse parte de mais de um ou de todos os grupos) congregaram-se aos milhares para mostrar a sua oposição à lei e para defender a Constituição (quando um fascista começa a defender direitos constitucionais é melhor precavermo-nos). E não faltava o cartaz a dizer “Despertem”, como se vê numa das fotos da galeria publicada pela Deutsche Welle, porque eles sabem o que os milhares de milhões de todos nós, narcolépticos instrumentalizados pelos poderes nas trevas, não sabemos. Só tenho uma pergunta, aqueles que dizem que os jornalistas não escrevem as “verdades” que eles sabem que nós sabemos e que aparentemente não queremos escrever recebem a informação privilegiada que lhes permite manter os olhos bem abertos de quem? Será que me podem meter na lista?

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