O dia em que O Navegador deixou de navegar

Desde 1975 que o restaurante O Navegador existia no topo do edifício classificado do Clube Naval, no centro do Rio de Janeiro. Muitos milhares de refeições depois, a pandemia deu-lhe o golpe de misericórdia. Teresa Corção, a chef e proprietária, recorda os dias de choro e ansiedade e explica como se põe fim, da melhor maneira possível, a uma história feliz.

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Esta é a história de como um restaurante chega ao fim. Aconteceu no Brasil, no Rio de Janeiro, mas é provavelmente semelhante a milhares de outras que acontecem todos os dias por todo o mundo neste ano de pandemia. O Navegador tinha 45 anos. No Verão de 2020 deixou de navegar. “Eu brincava dizendo que era como se estivesse no Titanic e tivesse que pular, mas não via nem se tinha bote lá em baixo. Uma pessoa pula porque tem que sobreviver...”

Quem nos conta a história é Teresa Corção, chef e até há poucos meses proprietária do Navegador. Mas este é também um relato de coragem, de como se aprende a dar a volta mesmo nas situações mais difíceis, de como os valores de cada um determinam a forma como se percorre um caminho que há menos de um ano era inimaginável.

A última vez que tínhamos estado com Teresa fora precisamente no lindíssimo salão d’ O Navegador, no edifício classificado do Clube Naval, no hoje um pouco decadente centro do Rio. Conversámos sobretudo sobre o mais recente projecto em que se tinha envolvido, através do grupo de ecochefs do Instituto Maniva, para valorizar produtos da Amazónia.

A comida estava óptima, como sempre, fazendo justiça aos pequenos produtores com os quais Teresa trabalhava — e cujas histórias fazia questão de contar não apenas nos pratos que cozinhava, mas de várias outras formas, incluindo o mapa identificando todos e cada um, espalhados por esse enorme território do Brasil, dos queijos artesanais de Minas Gerais às farinhas de mandioca do Pará, passando pelo palmito-pupunha e os ovos-caipiras ou o café orgânico.

Agora, passado um ano e poucos meses, descobrimos num post do Instagram que O Navegador chegou ao fim da sua viagem. Teresa aparece no ecrã do nosso telefone, a partir da sua casa no Rio, sorridente, tranquila e disposta a contar-nos como tudo aconteceu. Envia-nos as fotografias, tiradas pela sua filha Bel Corção, daquele que foi o último dia de O Navegador e decidimos que sim, vale a pena contar esta história — cheia de momentos trágicos, outros cómicos, outros improváveis, alguns quase heróicos à sua maneira — porque muitos irão, certamente, rever-se nela.

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Teresa Corção: “Eu brincava dizendo que era como se estivesse no Titanic e tivesse que pular, mas não via nem se tinha bote lá em baixo. Uma pessoa pula porque tem que sobreviver...” Bel Corção

“Na década de 90 ‘bombou’”

O restaurante, fundado por Margarida Corção, irmã de Teresa, em 1975 (ela entrou em 1981), já enfrentava dificuldades há algum tempo. “No início, tinha o público da cidade que gostava de ir lá porque era meio que um oásis, fora do clima de stress e de pressão. Na década de 90 ‘bombou’, fez muito sucesso.” Depois, o Centro do Rio começou a decair, “a Bolsa de Valores foi para São Paulo, as grandes empresas ali à volta começaram a esvaziar-se, primeiro por questões financeiras, depois por razões políticas” e as irmãs perceberam que o restaurante não podia sustentar as duas. Ficou Teresa.

Dali tirava “um bom salário”, mas nunca houve dinheiro para reinvestir, abrir um segundo, ampliar. “A coisa de uma empresa é que você tem que estar o tempo todo pensando em crescer. Tem isso do capitalismo que não é bom ficar igual, tem que querer sempre mais, mais, mais, e isso não é o meu perfil.” Mas a operação estava controlada e o restaurante ia navegando os altos e baixos normais, entre períodos de crise económica e outros de recuperação.

“De 2015 a 2018 foram anos muito ruins e comecei a pensar que não ia conseguir dar conta. Já havia alguns meses sem tirar dinheiro nenhum, outros em que tivemos que fazer empréstimos bancários por pequenos períodos”, conta. Começou a sentir que “o preço do stress” estava a aumentar. Fez contas e percebeu que fechar e indemnizar a equipa custaria muito mais do que as economias que tinha. “Mas descobri que se eu morresse com o restaurante aberto, aquela dívida iria para as minhas filhas, e aquilo começou a pesar-me. Não espero morrer tão cedo, mas não tinha botado aquilo na minha conta...”

Em 2018, 2019 as coisas começaram a melhorar lentamente. Surgiram alguns eventos, “e a gente lá, ralando para levantar”. Ainda tentou o delivery (take away), mas rapidamente percebeu que não era coisa para O Navegador, que tinha no seu salão no topo do Clube Naval uma parte essencial do seu charme.

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O Navegador funcionava num dos lindíssimos salões do Clube Naval, no centro do Rio de Janeiro Bel Corção

Teresa viajava muito por causa dos projectos do Maniva e, em particular, nos últimos tempos, pelo da Amazónia, que a tinha apaixonado. Estava precisamente em Manaus quando o novo coronavírus mudou a vida de toda a gente.

A covid-19 já há muito tempo andava por ali, mas só em Março é que a situação ficou clara e as autoridades começaram a tomar medidas. Percebendo o que ia acontecer, Teresa ligou para o restaurante. “Disse à minha gerente: ‘Fecha e manda todo o mundo para casa. Vê aí de comida o que se pode estragar e pede para as pessoas levarem. A gente vai aguardar para ver o que vai acontecer...”

Acreditou, como todos, que seria coisa para uns dois meses. Mas foi-se apercebendo de que “era muito pior do que a gente imaginava”. Com 65 anos e pertencendo a um grupo de risco por ter tensão alta, Teresa isolou-se sozinha em casa e começou a entrar em desespero. “Pensava: ‘Gente, o que é que eu vou fazer? Não está entrando dinheiro, e as contas chegando’.”

O Governo brasileiro libertou nessa altura uma verba para ajudar a pagar os ordenados dos funcionários que estavam em casa na condição de as empresas os manterem por um período equivalente após o confinamento. “Mas se você não tinha dinheiro para pagar para eles ficarem em casa, por que carga de água teria dinheiro para os manter depois sem saber o que viria pela frente?”.

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“De 2015 a 2018 foram anos muito ruins e comecei a pensar que não ia conseguir dar conta" Bel Corção

Deixar cair “empresas pequenininhas”

Toda a gente passou a receber muito menos e todos aguardavam. Em casa, Teresa trocava milhares de mensagens nos grupos de WhatsApp de chefs e donos de restaurantes que entretanto se tinham formado. Ninguém tinha soluções. Apesar disso, aconteceram “pequenos milagres”. Uma cliente falou-lhe de uma amiga consultora na área de administração que estava a fazer um trabalho pro bono para ajudar empresas pequenas. Tinha-lhe recomendado O Navegador. “Você aceita? Falei: ‘Lógico!’”.

Números e mais números, cenários, previsões. “Ela disse: ‘Eu acho que vai dar para continuar’”. Esperavam-se medidas de apoio do Governo. “Todos os dias eram WhatsApps como umas loucas, saiu, não saiu…”. E, de repente, “vazou” a informação de que numa reunião com o Presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, dissera “literalmente que não iam ajudar as empresas pequenas porque dão prejuízo”. A frase estava, preto no branco, nos jornais: “Vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”.

“A gente ‘sacou’ que ele estava enrolando todo o mundo. Eu falei: ‘Não vou pegar dinheiro emprestado ao banco quando não sei o que vai acontecer. Como é que eu posso escolher se não tenho escolha?’ Eu tinha o que tinha e não sabia o que vinha pela frente. ‘Não vou entrar nessa porque pode ficar muito pior.’” Ainda enviou um vídeo ao ministro Guedes, que era cliente d’O Navegador, e “a coisa ‘viralizou’”.

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Funcionário d'O Navegador e Teresa Corção durante uma sessão de fotografias no último dia em que o restaurante ocupou o espaço do Clube Naval Bel Corção

Sem saída, ofereceu o restaurante inteiro, com tudo, ao Clube Naval. “Estava crente que iam achar o máximo, e eu precisava de sair sem dívida e deixar o meu pessoal empregado.” O clube recusou. “Passei dias e dias chorando aqui dentro de casa.” Houve quem a aconselhasse a abrir falência para não ter que pagar indemnizações. “Gente, como é que eu ia fazer isso aos meus funcionários? Não tinha como...”

Houve, então, um “milagre”: as irmãs e o sobrinho emprestaram o dinheiro que precisava para juntar às suas economias e poder pagar tudo. Bom, tudo não: faltavam ainda 150 mil reais. Surgiu a ideia de um leilão. Teresa só procurava uma luz ao fundo do túnel. Já tinha admitido tudo, vender o seu apartamento, mudar de casa. Sabia apenas que não queria pedir dinheiro ao banco. Esse, sim, era um túnel do qual não via o fim. Contou aos funcionários que ia fechar e “foi um chororó geral, todo o mundo desesperado”. Ela própria chorava “igual a uma louca”.

O leilão fez-se, num salão do Clube Naval. Tudo o que fez a história dos 45 anos do Navegador vendeu-se, rendendo precisamente os 150 mil reais de que precisava. Teresa suspirou de alívio. Pagou a todos, mas ficou a faltar uma parte pequena, para que todos recebessem por igual. “Pensei: ‘Vou ter que pagar do meu bolso.’ E aí foi o momento em que os meus princípios e o meu bolso tiveram uma batalha. As transferências eram gordas, fiz titubeando, e aí é que vi o que é o nosso lado humano, que titubeia. Mas consegui. Chorava tanto e falei: ‘Ainda bem que fui criada com estes princípios’. Isto foi fundamental para fechar este ciclo bem.”

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“Pensava: ‘Gente, o que é que eu vou fazer? Não está entrando dinheiro, e as contas chegando’.” Bel Corção

“Cerimónia de fechamento”

Precisava só de fazer uma “cerimónia de fechamento”. Reuniu toda a gente no salão do clube, máscaras, viseiras, distâncias de três metros, enfim, todo o circo necessário. O cozinheiro, “que estava louco para cozinhar, fez uma comida”, todos falaram, Teresa ofereceu a cada um uma cópia do mapa do Brasil que estivera na parede com todos os produtores identificados e escreveu dedicatórias personalizadas. A filha Bel fotografou.

Depois, “a vida mudou totalmente”. “A pandemia obrigou-me a entregar-me ao momento presente. E aí eu falei: ‘O que é que faço com esse presente do momento presente?...”

Dispensou a empregada de casa. “Tive que passar a fazer todos os serviços domésticos. para falar a verdade nunca tinha nem olhado para a minha máquina de lavar a roupa.” Entrou no mundo do Zoom. “Encarei a solidão.” Depois de um alívio inicial, começou a descobrir coisas: o terraço no cimo do edifício onde pode correr e apanhar banhos de sol, coisa “da infância” que não fazia há décadas, as araras e até um tucano que aparecem por ali, colocou uma rede no apartamento, voltou a sentar-se para ler um livro, reparou nas palmeiras ao lado de casa, que nunca tinha visto, escreveu.

E voltou a cozinhar. Fê-lo para si própria, sem a preocupação de criar um prato para o restaurante. Redescobriu coisas da infância, “adorava mingau, os meus pais tinham hábitos muito portugueses, sopa, sobremesa de fruta”. “Comecei a redescobrir essas coisas e foi incrível, como se a minha alma estivesse entrando de novo no meu corpo. E eu falando: ‘Estou adorando isso, mas como é que vou fazer para viver depois?’”.

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Quando Teresa contou aos funcionários que ia fechar “foi um chororó geral, todo o mundo desesperado”. Ela própria chorava “igual a uma louca” Bel Corção

Gradualmente as coisas foram surgindo. Conversas com amigas espalhadas pela América Latina, um grupo de canto coral online com mulheres, reuniões Zoom do Maniva, a ideia de um programa de televisão, Na Cozinha da Corção, falando desse reencontro com a cozinha caseira, e, por fim, um mestrado online em Design.

“A gente descobre que não precisa de muita coisa e que acaba por fazer tanto penduricalho. Na verdade, a vida é mais simples e muito mais gostosa. Essa fantasia do capitalismo louco era muito boa para alguns, mas muito ruim para a nossa saúde e a nossa cabeça. A gente não estava nem escolhendo mais.” A pandemia veio trazer “um freio de mão puxado” que, como todos, “dá aquele sacolejo para que a gente acorde para várias coisas”.

Sorri no quadradinho do telemóvel. “Ainda tenho uma certa nostalgia de ter o meu cantinho e ver chegar uma pessoa, oferecer comida que eu criei, a pessoa comer e sair super feliz. Essa é uma emoção que faz falta, que dá saudade. Fora isso, está óptimo.”

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Teresa Corção Bel Corção
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