A França e os turcos

A nossa história europeia bem ensina como através dos séculos príncipes e tribunos se serviram da religião para enobreceram as suas ambições de poder, levando os cidadãos a confundir o trono e a igreja. A prática política muçulmana não foge a esta regra.

Afirmar que a comunidade muçulmana sofre injustiças e é estigmatizada é verdadeiramente exagerado.
Chems-Eddine Hafiz, reitor da Grande Mesquita de Paris, Outubro 2020

As exorbitantes imprecações do Presidente Erdogan contra o Presidente Macron, e contra a França em geral, têm diferentes destinatários, nomeadamente as comunidades turcas na Europa. Em França, os turcos residentes serão cerca de 800.000, segundo as melhores estimativas, bem menos que os quatro milhões na Alemanha. Nas últimas eleições na Turquia, mais de 50% dos eleitores turcos em França votaram Erdogan, percentagem superior aos votos recebidos na Turquia pelo Presidente.

A presença turca em França tem a sua história. A primeira emigração resultou de um acordo nos anos 50 do século XX entre os governos de Paris e de Ancara que previa a exportação de cidadãos turcos para aliviar a falta de mão-de-obra em França. Muito haveria a dizer sobre estes acordos feitos por cima da cabeça dos cidadãos, mas por agora lembremos que não foi a primeira vez que a França teve recurso a este tipo de acções. Durante a Primeira Guerra Mundial, idêntico acordo fez chegar a França milhares de chineses, que vieram tomar o lugar, nas profissões mais humildes, dos soldados franceses confinados nas trincheiras. Situação semelhante de falta de trabalhadores levou ao acolhimento de milhares de emigrantes portugueses, nas condições que se sabe. Felizmente tudo evoluiu e os portugueses são hoje cidadãos franceses perfeitamente integrados e respeitados, tal como os chineses e os turcos.

Sucederam-se diversas convulsões políticas e económicas na Turquia, até se chegar ao regime autoritário de Erdogan, o que levou milhares de turcos a emigrarem para França. Nem todos são muçulmanos sunitas, havendo-os de outras correntes, e também cristãos de confissão caldaica, curdos e dissidentes políticos. Todos estes núcleos têm redes próprias para a difusão das suas ideias.

Um dos centros mais significativos da diáspora turca é a cidade de Estrasburgo, que conta 150.000 pessoas. A sua importância é tal que em 2019 o próprio Erdogan veio ali fazer campanha eleitoral, participando num comício com milhares de pessoas. Um ano antes, Macron recebera Erdogan em Paris, mas parece singular que o Governo francês tenha consentido que um Presidente estrangeiro pudesse fazer propaganda política no seu território, salvo se nesta zona da França já se admite uma gestão partilhada entre os dois países. Aliás, consentiu também que o partido de Erdogan abrisse uma sucursal em Estrasburgo.

A importância de Estrasburgo neste contexto pode explicar-se pela proximidade da fronteira com a Alemanha, onde reside a maior comunidade turca na Europa. Significativamente, a Turquia fez construir nesta cidade um imenso consulado, quase um ministério, de onde se pode presumir que o Governo turco venha a exercer um controle de proximidade dos seus ex-cidadãos.

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O monumental consulado turco em Estrasburgo, França DR

Estrasburgo foi também uma cidade martirizada pelo terrorismo. Em dezembro de 2018, um homem matou a tiro num mercado cinco pessoas e feriu 11. Não resulta que em nenhum dos muitos atentados cometidos em França em nome do Islão radical estivessem envolvidos cidadãos turcos.

A nossa história europeia bem ensina como através dos séculos príncipes e tribunos se serviram da religião para enobreceram as suas ambições de poder, levando os cidadãos a confundir o trono e a igreja. A prática política muçulmana não foge a esta regra. Na Argélia de Bouteflika, como já no Marrocos de Mohamed V, a construção de uma nova grande mesquita, mais do que uma profissão de fé, foi um modo de coroar o próprio poder, sobretudo nos momentos de maior fragilidade. Bouteflika pensava consolidar o seu poder através da nova mesquita, mas o poder fugiu-lhe das mãos e não inaugurará a maior mesquita de África com um minarete de 276 metros. Erdogan transformou Santa Sofia em mesquita, sem precisar de construir nada de novo, bastando-lhe recuperá-la. Em Estrasburgo, porém, gerida pela comunidade turca, está em construção uma grande mesquita que deverá custar mais de 32 milhões de euros. A construção de grandes mesquitas na Europa não é uma novidade, bastando lembrar a de Roma, erguida nos anos setenta do século XX, a dois passos do Vaticano, segundo os planos dos arquitectos Gregotti (do CCB) e Paolo Portoghesi, que não eram muçulmanos. Não consta que uma grande catedral católica tenha sido levantada entretanto em algum dos países árabes do Golfo, onde trabalham mais de 1.600.000 filipinos, na sua grande maioria de confissão católica. A situação actual destes emigrantes não é, aliás, das mais favoráveis.

A religião serviu também de trampolim para a conquista do poder aos evangelistas Trump e Bolsonaro, embora em ambos a fé não pareça ser evidente.

O último barbaríssimo atentado terrorista perpetrado em Nice por um muçulmano tunisino, pouco depois de um inflamado discurso antifrancês de Erdogan, que definia a França como inimiga dos muçulmanos, não contribuirá para apaziguar os ânimos entre os dois países. Ocorreu no seio de uma Basílica católica no dia em que se celebrava a data do nascimento de Maomé. Macron lamentou que Erdogan não lhe tivesse apresentado condolências quando da decapitação de um professor com um simulacro de cimitarra, e também não é de esperar que se manifeste depois do atentado de Nice.

Esta série de atentados envenena a generalidade da sociedade francesa. Expressões como islamo-phobie, islamo-fascisme, islamo-gauchisme são correntes nos comentários da imprensa francesa, traduzindo tensões e polarizações que são o terreno de cultura dos populismos.

Desde a batalha de Matapão (1717) no mar Mediterrâneo, Portugal não se tem confrontado com os turcos e as relações são tranquilas, tendo até a Turquia abolido os vistos para os cidadãos portugueses que a queiram visitar. Alguns milhares de turcos vivem em Portugal, uns atraídos pelo regime dos vistos gold, que lhes possibilita circular no espaço Schengen a partir de Lisboa, alguns integrados no mundo dos negócios, outros ainda constituem uma emigração mais modesta que se pode encontrar na zona do Martin Moniz e vai subindo a Avenida Almirante Reis, até a abertura recente de um restaurante Istambul próximo da Alameda D. Afonso Henriques. Será de notar que enquanto noutros países os novos emigrantes são levados a instalar-se na periferia das grandes cidades, em Lisboa algumas dessas comunidades acolhem-se no centro da capital.

Entre os novos residentes turcos, é de assinalar cidadãos judeus sefarditas de remotas origens portuguesas, cujos antepassados foram generosamente recebidos pelo sultão. Passaram mais de cinco séculos sobre a expulsão dos judeus e dos árabes de Portugal – em mais um caso em que o poder se serviu da religião para fins políticos –, mas uma memória portuguesa terá continuado presente nestes homens e mulheres que desejaram recuperar a sua nacionalidade ancestral.

Um dos objectivos do islamismo radical, e não só, é o de impedir a integração dos fieis muçulmanos nos países que os acolheram, e onde seria de esperar que seguissem o velho preceito de em Roma serem romanos, mas a maioria destas comunidades, no caso francês e também no português, entendem seguramente que se escolheram vir a tornar-se cidadãos destes países devem seguir as normas vigentes, do mesmo modo que quando um não-muçulmano viaja para um país muçulmano segue as normas de convívio civil ali praticado. Como bem diz o Reitor da Grande Mesquita de Paris:

“Se se aceita ser francês, é necessário aceitar todas as regras. Apenas a lei estabelece os limites. Os muçulmanos podem viver normalmente na modernidade, sem se agarrarem ao que existia há mil e quatrocentos anos. Um versículo diz: ‘Se vos criei diferentes uns dos outros, foi para que se conhecessem.’ Não para vivermos fechados sobre nós próprios e em autarcia.” (entrevista a L’OBS, n. 2921, 22-28 Outubro).

Esperemos que assim seja, apesar de todos os ventos contrários.

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