Dia 116: “Se o Trump fosse meu neto...”

O nosso cérebro está condicionado a pensar em modo causa/consequência, a projectar os problemas no futuro, e é provavelmente pessimista por natureza para nos ajudar a prepararmo-nos para o pior — depois, se não for tão mau como isso, tanto melhor.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Mãe,

Tenho uma coisa para lhe contar: descobri um exercício de mindfulness, num blogue chamado Visiblechild, que achei que nos ia fazer muito bem. É perfeito para aqueles momentos em que os pais ou os avós se sentem tomado pela ansiedade que advém do medo de que os filhos/netos não se estejam a desenvolver como devem, não estejam a “progredir” como é suposto. Como os outros.

Chama-se Rabbit Hole (Toca do Coelho), porque nestes momentos sentimo-nos a cair vertiginosamente por um buraco sem fundo, como aquele pelo qual cai a Alice na história do País das Maravilhas, sugados pela sensação de que “é agora ou nunca”. Se eu não o forçar a fazer isto agora, ele nunca vai chegar lá, nunca vai aprender a ler ou a escrever, a cumprimentar as pessoas educadamente ou a não responder torto, a estudar para os testes ou a conseguir aquelas notas de que vai precisar para entrar na faculdade.

Espere, mãe, não se impaciente, já lhe explico como é que se “joga”. Então tome atenção e siga estes passos.

1.º Escolhe-se a preocupação que nos está a sugar para a toca do coelho. Por exemplo: “O meu filho de 5 anos não sabe nem se interessa pelas letras.”

2.º Começamos a descer pela toca — normalmente fazemo-lo inconscientemente, mas agora pedem-nos que vamos registando os nossos pensamentos (pode usar papel e lápis), acrescentando-lhes uma frase que comece por “Se” e depois inclua um “então”, pondo a nu a relação de causa e consequência que vamos estabelecendo. Por exemplo, “O meu filho de 5 anos não sabe nem se interessa pelas letras. Se ele não se interessa pelas letras aos 5 anos, então...”

3.º Agora completa-se a frase, sem pensar muito. Quase em associação livre. Por exemplo. “O meu filho de 5 anos não sabe nem se interessa pelas letras. Se ele não se interessa pelas letras aos 5 anos então... vai entrar para o 1.º ano sem saber nada.”

4.º Repete-se os passos 2 e 3, usando a segunda parte da frase e voltando a pôr o “se” e o “então”. Por exemplo, “Se ele vai entrar no 1.º ano sem saber nada, então...”, acrescentando sempre o que nos sair, verbalizando todos os nossos medos até que sinta que chegou a um fim, por mais trágico ou absurdo que esse final possa parecer.

Batendo no fundo do poço, respira-se um pouco, preparando-nos para a dar o passo decisivo.

A mãe já se perdeu? Não hiperventile, tenha calma, isto só é difícil à primeira vista, quando se põe em prática é muito mais fácil.

Concentre-se e vá para o ponto seguinte:

5.º Junta-se a frase inicial à última frase formulada, mantendo a estrutura do “se” e do “então”. Por exemplo: “Se o meu filho não se interessa pelas letras aos 5 anos, então... vai acabar a viver debaixo de uma ponte.”

Ok. Agora este passo é fundamental. Temos de olhar para esta frase, respirar e pensar nela. Parece-me exagerada? Como é que me faz sentir? Será que é nesta cadeia fatalista de acontecimentos em que inconscientemente penso quando começo a gritar com o meu filho para fazer os trabalhos de casa? Ou quando demora a acabar a ficha ou a sopa? Será que é isto que me faz sentir mal quando oiço que os bebés dos outros já dormem, ou já gatinham, ou já andam, ou já sabem ler e o meu não?

Experimente mãe, e depois diga-me se ajudou! Suspeito que funciona com qualquer tipo de ansiedades!

Beijinhos!


Querida Ana,

Tu imaginaste sinceramente que entre conferências de imprensa da DGS e as eleições americanas, a tua mãezinha, disléxica de nascença, conseguiria acompanhar estes passos todos sem cair na toca do coelho e, pior, ficar para lá sempre presa?! Se assim foi, tens os meus neurónios em melhor conta do que eu própria.

Mas lisonjeada pela tua fé em mim, fui buscar um papel e um lápis, decompus lenta e cautelosamente o enunciado da tua solução (repara que, generosamente, não lhe chamo problema), até me sentir suficientemente confortável com as premissas para me entregar ao exercício.

Quando apliquei o “Rabbit Hole” à minha principal ansiedade do momento, a frase final ficou mais ao menos assim: “Se o Trump ganhar mesmo as eleições, então é o fim do mundo.” E o pior é que quando segui o conselho seguinte, ou seja, respirei fundo, reflecti e perguntei-me se estava a exagerar, só fiquei ainda mais desesperada, porque conclui que não exagerava nem um bocadinho.

Aliás, mesmo quando mudo ligeiramente os dados da equação e começo a frase por “Se o Trump fosse meu neto”, a coisa também acaba inevitavelmente debaixo da ponte.

Falando muito a sério, ainda mais a sério, o nosso cérebro está condicionado a pensar em modo causa/consequência, a projectar os problemas no futuro, e é provavelmente pessimista por natureza para nos ajudar a prepararmo-nos para o pior — depois, se não for tão mau como isso, tanto melhor. Sendo assim é inevitável que apliquemos este defeito de raciocínio aos nossos filhos. Sentimo-nos tão responsáveis por eles, tão obrigados a protegê-los, a prepará-los para o que aí vem, que tudo o que fazemos hoje parece relevante para essa conta final.

Atrevia-me a dizer que com apenas um ou dois filhos, há mais tempo e mais disponibilidade para nos envolvermos nestas divinações, e caímos no buraco. E às vezes no ridículo. E é claro que ajuda pararmos para pensar até onde estamos a levar esta cadeia de “ses” e “entãos”, mas suspeito que só quando olharmos as nossas preocupações e insónias retrospectivamente, seremos capazes de nos rirmos delas. É também por isso que os segundos filhos, e os seguintes, têm a sorte de ter pais mais descontraídos. Pais que perceberam que não saber as letras antes de entrar para a escola, não quer dizer absolutamente nada.

Desculpa Ana, tenho de voltar às eleições. E ao Xanax.

Bj

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