Somos uma ilha cercada de loucura

E se todos os Invernos se internam doentes em corredores e se metem doentes com pneumonias em quartos de ortopedia, este ano temos nas mãos o risco real de não ter como internar todos os que precisam. Nem em macas nem em colchões no chão.

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"O confinamento da primeira vaga devia ter servido para preparar o SNS, mas não serviu" Reuters/JOHANNA GERON

Tinha prometido a mim mesma não voltar a escrever sobre a covid-19. Mas a verdade é que a falta de bom senso de uma importante franja da população me levou a quebrar a promessa. É que olho para um lado e vejo um grupo de profetas da desgraça que parece desejar um confinamento geral e que cria petições online para que as aulas deixem de ser presenciais. E quando olho para o outro encontro um bando de negacionistas que acham que isto é tudo uma manobra para controlo da população e que o Governo se prepara para nos injectar um chip quando nos for inoculada a tão desejada vacina. “Covideiros”, bradam uns. “Covidiotas”, berram os outros.

E no meio desta loucura generalizada, entre os que ignoram os efeitos devastadores que novo confinamento trará à nossa economia e os que apelam à desobediência civil porque acreditam que as máscaras provocam hipoxemia, ficam pessoas como eu, incapazes de se rever em qualquer um dos lados da batalha.

Parece haver quem não o consiga compreender, mas juro que é possível temer a covid-19 e o colapso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e, ainda assim, ser totalmente contrário a medidas avulsas como o são o dever de permanência no domicílio ou a impossibilidade de circular entre concelhos a não ser que se jure pela saúde da nossa avozinha que vamos só levar comida a um idoso doente.

Eu quero que o meu filho mais velho possa continuar a ir à creche com os amigos e espero que ninguém se lembre de forçar qualquer um dos meus pequenos (2 e 3 anos) a usar máscara. Também quero que a nossa frágil economia não quebre de vez e que o número de desempregados não aumente num ritmo semelhante ao número dos que têm de recorrer à ajuda do Banco Alimentar. Mas também quero que os que agora gritam que o SNS colapsa todos os anos percebam que estamos a falar de uma elevada probabilidade de um colapso como nunca visto. Um colapso que pode fazer com que uma vítima jovem de um acidente de viação não possa ser socorrida por não existir um único ventilador livre neste país.

O nosso Serviço Nacional de Saúde, poupem-me a expressão, é um doente crónico. Mas é um doente crónico que se vai aguentando. E se todos os Invernos se internam doentes em corredores e se metem doentes com pneumonias em quartos de ortopedia, este ano temos nas mãos o risco real de não ter como internar todos os que precisam. Nem em macas nem em colchões no chão.

A gestão desta pandemia tem sido desastrosa. A promoção do medo inicial em vez do apelo à responsabilidade individual e ao esclarecimento cabal da população deu lugar a um “vão de férias e venham de lá os turistas ingleses que está tudo lindamente aqui no cantinho à beira-mar plantado”. E enquanto muitos foram a banhos devia ter-se aproveitado para reforçar a capacidade de resposta do SNS e para formar profissionais em cuidados intensivos. Acontece que nada disso se fez e as obras de alargamento dos serviços estão a começar agora tal como as tentativas desesperadas de contratação de mão-de-obra com experiência em medicina intensiva. Alerta de spoiler: Não há médicos e enfermeiros intensivistas desempregados a cada esquina.

O confinamento da primeira vaga devia ter servido para preparar o SNS, mas não serviu. A trégua que a pandemia concedeu nos meses de Verão também não. E agora aqui estamos, na iminência do colapso daquilo que sempre tivemos como seguro enquanto uns quantos, que não sabem a diferença entre um ventilador e uma seringa infusora, vão gritando que só acreditamos nisto porque somos ovelhas.

Quero muito que Portugal não volte a fechar (mas cada vez vejo menos alternativas, confesso). Quero muito que as pessoas percebam que os eventos, mais pequenos e com regras escrupulosamente cumpridas, podem acontecer. Quero que as nossas crianças possam ser crianças e que o futuro deste país não seja mais negro que a meia-noite sem lua.

Mas para isto acontecer é necessário que todos cumpramos a nossa parte. É necessário que as máscaras sejam colocadas e correctamente usadas, é necessário que o distanciamento social seja cumprido, é necessário que lavemos as nossas mãos e que, durante algum tempo, abdiquemos de grandes convívios em família (porque sim, é nestes convívios, quando baixamos a guarda e as máscaras, que os contágios mais acontecem). E para isso é imperativo que os negacionistas e todos os que se dizem #pelaverdade (que, curiosamente, é uma verdade anticiência) percebam que também terão de fazer a sua parte.

Será que nunca ninguém disse a esta gente que é no meio que está, quase sempre, a virtude? Se nunca ninguém disse, então que o digamos agora. Enquanto ainda é tempo.

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