Como os cromossomas Y dos neandertais podem ter sido substituídos pelos nossos

Equipa de cientistas sugere que há bem mais de 100 mil anos os cromossomas Y (transmitidos de pai para filho) dos neandertais foram substituídos pelos dos humanos modernos.

Foto
Reconstituição de um grupo de neandertais Elisabeth Daynes/Science Photo Library

Análises de ADN antigo conseguem resgatar informações surpreendentes sobre a evolução humana. Desta vez, a história desvendada em laboratório recua alguns milhares de anos e junta cromossomas Y de Homo sapiens (a nossa espécie), neandertais e denisovanos. O que se viu quando se compararam os cromossomas Y destes três grupos de humanos? Os dos neandertais estudados eram mais parecidos com os da nossa espécie do que com os dos denisovanos. Com base nestes resultados e supondo-se que os cromossomas Y de neandertais e denisovanos já tinham sido bem semelhantes em tempos, sugere-se que os neandertais acabaram por substituir os seus cromossomas Y pelos nossos e que isso aconteceu há mais de 100 mil anos. 

Até agora, não se tinham feito grandes estudos sobre os cromossomas Y (transmitidos de pai para filho) de neandertais. Num comunicado sobre o trabalho agora publicado na revista científica Science, indica-se que as amostras de ADN de neandertal que estavam suficientemente bem preservadas e que tinham quantidades suficientes pertenciam a indivíduos do sexo feminino. Agora, conseguiu-se analisar amostras de ADN de três neandertais (que viveram há entre 38 mil e 53 mil anos) e dois denisovanos (com entre 55 mil e 136 mil anos). Através de uma nova abordagem, reconstituíram-se sequências de cromossomas Y desses indivíduos.

Estavam assim reunidas todas as condições para se fazerem comparações entre os humanos actuais, os neandertais (humanos que surgiram há cerca de 400 mil anos na Europa e no Médio Oriente e se extinguiram há 28 mil anos, na Península Ibérica) e os denisovanos (humanos que viveram até há 30 mil anos). Viu-se então que os cromossomas Y dos neandertais analisados eram mais parecidos com os de humanos modernos do que com os dos denisovanos.

“Porque é que isto é surpreendente? Quando olhamos para os autossomas (cromossomas não sexuais, em que cada um de nós tem uma cópia da mãe e outra do pai), os neandertais são mais semelhantes aos denisovanos do que com os humanos modernos”, contextualiza Vítor Sousa, biólogo na área genética populacional do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (Ce3c), da Universidade de Lisboa, e que não participou no estudo.

Foto
Dente de um dos neandertais agora estudados I. Crevecoeur

Com base nesses resultados, sugere-se que a certa altura os cromossomas Y dos humanos modernos substituíram os dos neandertais. “Ainda não é bem claro que a substituição tenha mesmo ocorrido”, considera Vítor Sousa, ressalvando mesmo assim que os resultados são “interessantes”. O biólogo também avisa que não foram considerados vários factores que podem afectar estes padrões, como diferentes taxas de mutações nas diferentes espécies. “Taxas de mutações superiores nos denisovanos poderiam levar a essas maiores diferenças”, exemplifica.

Como pode ter ocorrido essa substituição? “A única explicação para isto é que houve fluxo genético entre os neandertais e os humanos modernos”, responde Martin Petr, primeiro autor do estudo e investigador do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig, na Alemanha. Através de modelos computacionais, estimou-se ainda que isso tenha ocorrido devido à reprodução entre a nossa espécie e os neandertais entre há bem mais de 100 mil anos e menos de 370 mil anos.

Se se confirmar, podemos estar perante a mais antiga reprodução entre os humanos modernos e os neandertais – algo que até já tinha sido visto noutros trabalhos, mas com outras provas. Destaca-se também que há mais de 370 mil anos os cromossomas Y de neandertais seriam ainda mais parecidos com os de denisovanos do que com os do Homo sapiens (que surgiu há cerca de 300 mil anos).

Não se sabe ao certo onde esse cruzamento entre a nossa espécie e os neandertais terá acontecido. Como até agora não se encontraram fósseis de neandertais em África, é improvável que tal tenha ocorrido no continente africano. Martin Petr indica que é mais provável que esta reprodução tenha acontecido algures no Oeste da Eurásia, como no sítio arqueológico de Apidima, na Grécia, onde se encontraram vestígios de neandertais e de humanos modernos com cerca de 200 mil anos.

Pequenas populações e consanguinidade

Um dos enigmas que também se quis esclarecer foi: porque é que aconteceu a substituição de cromossomas Y? Por um lado, aponta-se que as populações de neandertais eram mais pequenas relativamente às do Homo sapiens. Por outro, haveria muita consanguinidade nos neandertais, o que fez com que acumulassem mutações com efeitos negativos na fertilidade. Após muitas gerações de consanguinidade, os cromossomas Y dos neandertais poderiam ter acumulado muitas dessas mutações prejudiciais. Já o cromossoma Y de humanos modernos teria menos dessas mutações. Ao ter ocorrido o cruzamento entre humanos modernos, ao longo das gerações, o processo de selecção natural levaria ao desaparecimento dos cromossomas Y dos neandertais. Para se comprovar a hipótese, fizeram-se simulações computacionais que mostraram que isto pode mesmo ter acontecido.

Vítor Sousa nota que há vários passos que têm de ser investigados para se verificar a hipótese da substituição de cromossomas. Primeiro, refere que ainda não há uma forma exacta para se encontrar essas mutações prejudiciais e que isso é um dos objectivos actuais da genética populacional. Depois, teria de se conseguir ter uma melhor caracterização das histórias demográficas de neandertais e denisovanos. Por fim, à medida que se vai sequenciando mais genomas antigos, vamos ficando com mais informação. “Com o desenvolvimento de novas ferramentas e métodos bioinformáticos de análise de dados poderemos começar a olhar para estas questões.”  

Janet Kelso diz estar optimista e espera que a hipótese se confirme no futuro. A cientista do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva e coordenadora do estudo prevê ainda que, se se conseguir recuperar sequências de cromossomas Y de fósseis de neandertais com cerca de 400 mil anos, poder-se-á ver que, nessa altura, os cromossomas Y de neandertais e de denisovanos ainda eram mais parecidos do que com os dos humanos modernos. Afinal, a substituição de cromossomas Y só viria a acontecer há menos de 370 mil anos. Desta forma, esses resultados poderiam dar força à hipótese agora lançada. 

Em 2016, uma outra equipa de cientistas publicou um estudo na revista The American Journal of Human Genetics em que se comparavam cromossomas Y de populações humanas actuais com os de um neandertal que viveu há 49 mil anos – e que também foi analisado para o trabalho publicado agora na Science. Nessa altura, não se encontraram genes do cromossoma Y neandertal nos cromossomas Y de hoje. Martin Petr esclarece que os resultados desse estudo eram provenientes de “dados com pouca qualidade” e que muitas conclusões acabaram por ser “incorrectas”.

Sugerir correcção