Uma segunda vaga de covid é evitável, dizem peritos. Mas é preciso reduzir contactos nas escolas

Especialistas explicaram aos políticos o que fazer para evitar uma segunda vaga de covid-19 em Portugal. Os adultos parecem infectar mais as crianças, indicam resultados de um estudo que “podem ser reconfortantes nas decisões sobre a reabertura das escolas”, disse infecciologista.

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Paulo Pimenta

Numa altura em que o número de novos casos voltou a uma trajectória ascendente, os olhos estão postos no impacto da reabertura das escolas. Mas os especialistas são unânimes: uma segunda vaga de covid-19 em Portugal não é uma inevitabilidade, desde que se adoptem as medidas adequadas. A probabilidade será muito baixa se a rede de contactos nas escolas for reduzida para um terço do que se verificava antes da pandemia, antecipou Manuel Carmo Gomes, epidemiologista e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Mas isso não basta: ao mesmo tempo, é necessário que os contactos na sociedade no seu todo diminuam para metade do que se verificava na época pré-covid, avisou.

Manuel Carmo Gomes não foi o único especialista em epidemiologia e saúde pública a defender esta tese no encontro desta segunda-feira no Porto — que juntou peritos, políticos e parceiros sociais. Esta reunião foi a primeira desde 8 de Julho, quando as que se realizavam no Infarmed (Lisboa) foram interrompidas, e foi também a primeira a ser aberta ao público, ainda que apenas na parte inicial. Com a presença do Presidente da República e do primeiro-ministro, o debate não ia supostamente ser transmitido, mas ainda foi possível ouvir as perguntas do presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, que disse não perceber como é possível que não se tenham retirado lições do que aconteceu nos lares de idosos e que a este nível continuemos numa situação semelhante à que se vivia no início da pandemia. Só quando André Ventura começou a fazer perguntas é que a transmissão foi interrompida.

No encontro também se falou do inquérito serológico nacional e do crescimento das infecções desde a segunda semana de Agosto, mas o impacto do regresso às aulas foi o tema preponderante. Para evitar o aparecimento de uma segunda vaga, Manuel Carmo Gomes, que usou modelos matemáticos para fazer previsões, recomendou que se ventilem “salas e espaços” partilhados, que se tenha uma só sala para cada turma, e que se evitem “espaços fechados com não co-habitantes”.  Sugeriu ainda a “flexibilização do regime de aulas: presencial, misto e virtual” e o alargamento e ajustamento dos horários de funcionamento. 

Lembrando que, quando se abriram parcialmente as escolas nos 11º e 12º anos, em 18 de Maio, não houve diferenças na transmissibilidade entre os alunos que foram às aulas e os que ficaram em casa, a directora da Escola Nacional de Saúde Pública, Carla Nunes, mostrou-se também convicta de que “as escolas provavelmente não serão ambientes de propagação mais eficazes do que outros ambientes, seja laborais seja de lazer, que tenham “com densidades semelhantes”, desde que sejam adoptadas “medidas adequadas”.

Passando em revista o exemplo de alguns países que já reabriram as escolas parcial ou completamente, Carla Nunes frisou que vários reportaram surtos nos estabelecimentos de ensino e outros, apenas casos esporádicos. O caso de Israel, que em 17 de Maio reabriu totalmente as escolas, não correu bem, mas isso aconteceu porque as escolas reabriram “com salas sobrelotadas, com pouco arejamento natural e porque foi suspenso o uso obrigatório de máscaras durante três dias devido a causa de uma onda de calor”. As escolas não serão provavelmente locais de propagação mais eficazes do que outros locais, sustentou, frisando que “não há evidência” de que “a reabertura das escolas foi associada a aumentos significativos de transmissão comunitária”. Mas enfatizou, cautelosa, que se trata ainda de “uma abertura parcial e muito limitada”, não “uma verdadeira abertura” das escolas.

Em França, que abriu os estabelecimentos escolares no passado dia 1, há agora 22 escolas fechadas num universo de mais de 60 mil, enquanto em Berlim, na Alemanha, há 41 em 825 escolas fechada, adiantou. E destacou a grande heterogeneidade dos modelos e das medidas de país para país: a Dinamarca e a Noruega abriram primeiro as escolas das crianças mais novas, enquanto o Uruguai optou para abrir os estabelecimentos de zonas rurais e a Alemanha e os EUA as escolas de zonas de menor incidência de covid-19.

De igual forma, as distâncias preconizadas entre alunos variam de país para país: na Dinamarca os alunos têm que estar distanciados pelo menos dois metros, em Espanha, um metro e meio, e na Noruega, apenas um. O uso de máscara não é obrigatório na Alemanha dentro da sala de aula e, se em Espanha as crianças a partir de seis anos têm que usar máscara, em França isso só é imposto às que têm mais de 11 anos. 

Rt não deverá aumentar com abertura das escolas

Henrique Barros, presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), também se mostrou convencido de será possível “controlar a situação” e que, apesar da abertura das escolas, é de esperar que o Rt (índice de transmissibilidade, o número de pessoas que um infectado pode contagiar) não aumente mais do que se verifica actualmente. “É possível pensar que seremos capazes de controlar a situação”, afirmou.

Usando um estudo sobre a transmissão entre crianças e adultos, Maria João Rocha Brito, responsável pela infecciologia do Hospital pediátrico Dona Estefânia, destacou que a covid-19 não se transmite “como a gripe”, em que as crianças são uma grande fonte de transmissão “domiciliar e comunitária”. Pelo contrário, o estudo demonstra que os adultos infectam mais as crianças, pelo que os resultados “podem ser reconfortantes nas decisões sobre a reabertura das escolas”. A infecção transmite-se de forma diferente nas várias faixas etárias, com a transmissão entre os zero e os nove anos a ser mais baixa do que nas idades mais velhas (entre os dez e os 16). Por isso, concluiu, “abrir infantários é uma coisa, abrir secundárias é outra e abrir faculdades é outra”.

No início do encontro, Pedro Pinto Leite, da Direcção-Geral da Saúde, já tinha actualizado a situação epidemiológica a nível nacional, especificando que desde meados de Agosto tem havido “uma trajectória crescente”, com 3909 casos entre 17 e 30 desse mês, metade dos quais assintomáticos. A “incidência vai sendo cada vez menor à medida que avançamos no grupo etário”, com excepção para os indivíduos entre os 20 e os 29 anos e as pessoas com 80 ou mais anos. Cerca de dois terços dos infectados têm menos de 50 anos e a maioria dos casos foi registada na região de Lisboa e Vale do Tejo (56%) e no Norte (31%). 

Relativamente às vacinas em desenvolvimento, o presidente do Infarmed, Rui Ivo, fez um ponto da situação e voltou a afirmar que Portugal deverá receber 6,9 milhões de doses da vacina da AstraZeneca e a Universidade de Oxford, já na fase 3 dos ensaios clínicos e com resultados aguardados para Outubro. A União Europeia já assinou um contrato para o fornecimento de 300 mil unidades e a principal tranche da quota portuguesa deverá chegar entre o final deste ano e meados do próximo. Mas há pré-acordos com outros laboratórios que também estão a desenvolver uma vacina. 

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