Descoberta a cremação humana mais antiga. Tem nove mil anos

Fragmentos ósseos encontrados dentro do fosso de uma pira funerária, em Israel, datam de 7000 a.C. e pertenceram a um jovem adulto. Descoberta marca uma mudança cultural nas práticas fúnebres do período Neolítico.

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Local da escavação onde se vê a fossa com a pira funerária Missão Beisamûn

Com a chegada do período Neolítico, o tratamento dos mortos foi um processo complexo, inserido num importante contexto de mudança assente na sedentarização e no surgimento da agricultura. No Antigo Oriente Próximo, hoje designado Médio Oriente, os procedimentos funerários variavam de comunidade para comunidade e de indivíduo para indivíduo. Neste período de transição, antigas tradições, como o desmembramento de cadáveres e a remoção do crânio, estavam de saída e práticas como a cremação chegavam. Escavações arqueológicas em Beisamûn (vale do Jordão, a norte de Israel), segundo um estudo publicado em Agosto de 2020 na revista científica PLOS ONE, vieram revelar provas da mais antiga cremação realizada no Médio Oriente, datadas de 7000 a.C. – há, portanto, cerca de nove mil anos.

Após nove anos, as escavações arqueológicas terminaram em 2016 no local neolítico de Beisamûn, levadas a cabo por uma parceria entre o Centro Nacional de Investigação Científica francês (CNRS), o Ministério dos Negócios Estrangeiros de França e a Autoridade de Antiguidades de Israel. Os resultados não podiam ser melhores. A equipa internacional liderada pela arqueóloga e antropóloga Fanny Bocquentin, do CNRS, com a ajuda da estudante de doutoramento em práticas funerárias do sétimo milénio Marie Anton e de vários outros peritos em solo, botânica e animais, descobriu um antigo poço de uma pira funerária, que guardava 355 fragmentos ósseos.

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Local da escavação onde se vê a fossa onde foi feita a pira de cremação humana Missão Beisamûn

“Do ponto de vista metodológico, os restos de ossos cremados são muito difíceis de identificar durante as escavações. Neste estudo, foram identificados numa fase inicial da escavação do poço graças à presença de um antropólogo bem treinado em trabalho de campo (neste caso, eu mesma)”, conta ao PÚBLICO Fanny Bocquentin.

Recorrendo a uma abordagem multidisciplinar, que permitiu aos investigadores reconstituir as diferentes fases e técnicas envolvidas nesta prática – a construção do poço crematório, a estrutura da pira, a escolha do combustível para atear o fogo, a posição inicial do cadáver –, conseguiu-se chegar a resultados bastante concretos.

O poço, em forma de U, apresentava 80 centímetros no seu maior diâmetro e 60 centímetros de profundidade. Através de uma análise micromorfológica dos sedimentos, percebeu-se que a parede, com cerca de dois centímetros de espessura, tinha sido rebocada com um material à base de argila, molhado na altura da aplicação e, posteriormente, queimado, chegando a atingir os 700 graus Celsius. Os vestígios encontrados no seu interior escondiam ainda mais pormenores.

A quem pertenciam as ossadas?

Os restos de ossos humanos, alguns dos quais queimados, datados de 7031 a 6700 a.C., encontravam-se distribuídos pelo fundo da cova, em parte sobrepostos. No seu conjunto, apesar da ausência de articulações e da dispersão de alguns fragmentos, os ossos mostravam uma coerência anatómica, ou seja, uma distribuição não aleatória, o que sugere o depósito de um cadáver articulado. O local onde ainda se encontravam quatro falanges dos pés indica que o corpo terá sido colocado na pira com os joelhos flexionados, assemelhando-se a uma posição sentada, suportada pela parede.

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Os restos ósseos encontrados na pira Missão Beisamûn

Como adianta o artigo científico, para aferir a idade foram analisadas as epífises (extremidade dos ossos longos que, na fase de crescimento, é composta por uma zona cartilaginosa que depois solidifica). Durante a infância e a adolescência, a cartilagem epifisária promove o crescimento, mas, quando o indivíduo atinge a idade adulta, esta camada é substituída por osso compacto, interrompendo-se o crescimento. No caso das ossadas encontradas em Beisamûn, as epífises preservadas estavam fundidas, o que acontece antes dos 30 anos de idade. Os investigadores estavam, então, na presença de um jovem adulto. Já o sexo não pôde ser definido, dada a grande fragmentação dos ossos.

Sabe-se ainda que o indivíduo tinha sido ferido, meses ou anos antes de morrer, por um projéctil de sílex, incrustado na omoplata. Com base na área completamente curada da ferida, que pode levar seis semanas a alguns meses para cicatrizar, os investigadores garantem que o indivíduo sobreviveu à lesão.

Vestígios microscópicos de plantas encontrados no interior do fosso da pira funerária, como caniços e capins, são provavelmente restos do combustível para o fogo. Esta prova leva os autores a identificar esta cremação como intencional de um cadáver “fresco”, em oposição à queima de restos humanos que foram exumados ou a um trágico acidente de incêndio.

“O tratamento funerário envolveu a cremação in situ, dentro de uma pira, de um indivíduo jovem adulto que sobreviveu a uma lesão causada por um projéctil de sílex. O inventário dos ossos e a sua posição relativa apoiam fortemente a ideia do depósito de um cadáver articulado e não de ossos deslocados”, esclarece a investigadora em comunicado sobre o trabalho.

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A lesão provocada no ombro do indíviduo cujos restos mortais foram encontrados na pira funerária Missão Beisamûn

Mas terá sido sempre assim? “O tratamento dado aos mortos durante a neolitização no Médio Oriente foi um processo complexo, que fazia parte de um mundo cognitivo e simbólico que tinha subjacente mudanças económicas e de dieta com a passagem da caça e da recolecção para o agro-pastoralismo”, refere o artigo da equipa, acrescentado que terão coexistido várias práticas de enterramento. “Ocasionalmente, havia a remoção da carne e/ou o desmembramento e também se suspeita de que se praticou temporariamente a mumificação.”

Outra equipa, que inclui cientistas do Conselho Superior de Investigações Científicas espanhol, publicou em Maio deste ano, na revista científica Quarternary International, mais pormenores relacionados com as práticas fúnebres do Neolítico. Uma análise a mais de 600 instrumentos de pedra, incluindo 200 lâminas de sílex, encontrados na gruta de Nahal Hemar, também em Israel, juntamente com restos mortais de 23 indivíduos, permitiu descobrir que os utensílios terão provavelmente sido utilizados para o desmembramento dos cadáveres.

O artigo na Quarternary International dá conta de que, há cerca de dez mil anos, no Antigo Oriente Próximo, vários rituais eram levados a cabo no momento da morte. Nalgumas regiões era comum enterrar os mortos dentro das casas, enquanto noutros locais era habitual extrair, manipular e deslocar os restos do esqueleto. É conhecida, por exemplo, a prática de extrair o crânio e depois cobri-lo com cal, de forma a demarcar o nariz, as orelhas, os olhos e a boca.

A utilização da cremação no sétimo milénio indica, portanto, uma mudança da relação com a morte no Médio Oriente. “Esta é uma redefinição do lugar dos mortos na região e na sociedade”, conclui, por sua vez, Fanny Bocquentin.

Texto editado por Teresa Firmino

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