Os frugais e os outros

Não precisa a Holanda da União Europeia e do seu mercado? Não precisa dos impostos dos outros? Afinal, o que procurava Rutte, primeiro-ministro de um mini país que, se estivesse fora da União Europeia, ninguém na Ásia ou na América de Trump seria capaz de reconhecer?

Ao fim de quatro dias de deliberações e de intenso melodrama, o Conselho Europeu chegou, finalmente, a uma decisão. O que era suposto nascer como a pedra angular de uma nova fase da vida da Europa, confirmando que esta é uma entidade que sabe proteger os seus e pretende sobreviver num mundo hostil – e no preciso momento que seria de consagração dos valores da solidariedade –, acabou por ser manchado por um espectáculo inenarrável protagonizado pelo primeiro-ministro holandês. Já se esperava que a aprovação do plano Merkel-Macron não fosse um passeio, pois cortava de facto com décadas de tabus alimentados pelos nossos amigos ingleses e escrupulosamente respeitados pelos alemães.

O que estava em jogo neste Conselho Europeu era muito, não só em dinheiro, mas sobretudo no significado que esta medida teria para o futuro da Europa. Ora sendo este assunto assim tão importante, era mais do que provável que cada um dos 27 participantes – numa estrutura de decisão que insiste em manter 27 vetos – tentasse aproveitar o momento para tirar benefícios próprios. Quem acordou, em 2001, o Tratado de Nice que deveria preparar a União para um mega alargamento a leste acabando de vez com os vetos, deve ter tido a noção de que o resultado obtido, e para o qual os ingleses tanto insistiram, tornaria a governação da Europa numa missão quase impossível.

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O primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, no Conselho Europeu EPA/STEPHANIE LECOCQ

Mas em Julho de 2020 estava-se sobretudo à espera de que fossem os neofascistas dos governos da Hungria e da Polónia a manifestarem-se para protegerem a renda inexplicável de que gozam. Para quem não sabe, estes dois países recebem anualmente da União duas das maiores contribuições: a Hungria, com 5% do PIB, é o maior recebedor em termos relativos e a Polónia recebe a maior contribuição em valores absolutos. Curiosamente, tanto a Hungria como a Polónia queixam-se da UE, dando-se ao luxo de desprezarem os valores europeus da liberdade e do Estado de direito democrático.

Aparentemente, fazem-no porque se consideram herdeiras superiores de um passado secular grandioso. A ilusão é, como se sabe, um produto de uso corrente e ao alcance de todos, mas o que a História diz do passado destas nações, em concreto, não suportaria reivindicações de grande sobranceria nacional, nem quanto ao seu estatuto independente, nem quanto à sua importância regional. Uma coisa é certa, nunca no passado a Polónia e a Hungria tiveram a independência e a projecção internacional de que beneficiam hoje no seio da União. Orbán, qual grande campeão, lá estava em Bruxelas a marcar o terreno, mas, surpresa das surpresas, a verdadeira força de bloqueio à construção da solidariedade europeia veio de um país fundador, a Holanda.

O que terá motivado Mark Rutte a esta luta sem tréguas contra a proposta franco-alemã? Havia mesmo necessidade de mostrar à exaustão a sua animosidade contra a ajuda, tão evidentemente necessária, da Europa aos seus? Não precisam de nos repetir o que pensam alguns políticos holandeses sobre os povos do Sul. Não é de agora e Rutte não se cansou de o verbalizar durante estes dias, desvalorizando o quadro de desolação absoluta provocada por um vírus que, apesar de tudo, não fala latim. Então, mas afinal o que procurava Rutte, primeiro-ministro de um mini país que, se estivesse fora da União Europeia, ninguém na Ásia ou na América de Trump seria capaz de reconhecer?

Será que haverá algum outro país que mais beneficie do facto de ter um mercado cativo desta dimensão? Será que Rutte acha que não é igualmente visível o aproveitamento irregular, para não dizer ilícito, que resulta da Holanda ser o albergue offshore de empresas que não pagam os impostos onde deviam? Porque os holandeses (como aliás os irlandeses e os luxemburgueses) descobriram algo – que os consultores chamam de situação win-win – que é o de proporem a empresas de outros países que paguem os seus impostos na Holanda que até lhes aplica uma tabela simpática e baixinha. Ganham as empresas porque pagam menos impostos e ganham as finanças públicas holandesas, e daí o win-win. Será que Rutte não sabe que toda a gente sabe que esse desvio representa um corte nas receitas dos outros países, alguns dos quais não têm, neste momento, dinheiro para fazer frente à crise? Se Rutte sabe isto tudo, porque protagonizou de peito feito este solilóquio lamentável? Não precisa a Holanda da União Europeia e do seu mercado? Não precisa dos impostos dos outros?

De acordo com o Tax Justice Network, em 2018 a Holanda recebeu 6,7 mil milhões de euros de impostos que deveriam ter sido pagos na Alemanha, França, Itália e Espanha (só para falar nestes quatro países), sendo que, por cada euro que a Holanda cobra de impostos a empresas desses países, a colecta no país de origem seria da ordem dos quatro euros. Win-win sem margem de dúvida, mas é tempo das autoridades fiscais afectadas encontrarem forma de retirar à Holanda os subsídios que este país recebe desta forma.

Por que razão é que a Holanda – que foi pioneira no projecto europeu – manifesta agora divergências tão notórias com os objectivos europeus? As respostas existem e Rutte conhece-as bem. Serão porventura de duas ordens: umas imediatas e outras mais de fundo.

As imediatas serão cálculos políticos para massajar algum eleitorado nacionalista, mostrando-lhe que não necessitam dos partidos de extrema-direita porque ele, Rutte, faz bem esse serviço de lutar contra os estrangeiros, em especial contra os pobres selvagens do Sul. Não deixa, no entanto, de ser curiosa a empatia gerada pelos movimentos nacionalistas holandeses de extrema-direita nos movimentos similares dos diferentes países. Mas ao mesmo tempo não é fácil compreender o que une a extrema-direita espanhola ou italiana com a congénere holandesa. Interesses comuns não serão certamente.

Mas há com certeza outras razões mais profundas para a atitude beligerante dos holandeses. E essas ficaram agora expostas com a saída da Inglaterra, porque na Holanda há quem acredite que a Europa deveria ser apenas um mercado comum, mas não uma casa comum. Com a saída dos ingleses, descobriu-se a careca aos holandeses, que passaram a ter que ser eles os protagonistas do papel que os ingleses vinham assumindo desde sempre.

Porque entraram então no projecto europeu? Há quem diga que por receio de ficarem isolados porque eram um país muito pequeno. Mas também porque, ao entrarem, tinham sempre a possibilidade de travar tudo o que fosse para além do mercantilismo puro, e isto, com a saída dos ingleses, ficou mais difícil. A Holanda sabia que com a ajuda de um veto aqui e um veto ali, sempre poderia ir conseguindo qualquer coisa, mas neste caso não conseguiram replicar a força da Inglaterra. E há algo de que podemos estar certos: se a Inglaterra ainda fizesse parte da União, este acordo nunca teria acontecido.

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