As crianças também são vítimas: testemunho na primeira pessoa

Quando existam processos de violência doméstica, os processos de regulação parental não lhes podem ser indiferentes. A proposta já foi feita e chumbada uma e outra vez. Do que é que estamos à espera para reconhecer as crianças como vítimas?

Um copo de leite quente pela manhã. Trouxe-mo a vizinha Idalina. Esta noite a minha mãe e eu dormimos na sua casa. É a segunda vez que serve de abrigo contra a violência doméstica. Mas os episódios são muitos mais do que aqueles que eu consigo lembrar. Quando tinha sete anos saímos de casa e vivemos durante um mês na casa da minha tia-avó Minda.

A violência não terminou com a separação. Perseguições, ameaças, agressões físicas e verbais continuaram durante anos. Acompanhando um processo de divórcio litigioso que só aconteceu ao fim de outros sete anos. Eu não tinha marcas no corpo porque essa violência física não era diretamente contra mim. Nunca me consideraram vítima. E fui tantas vezes (que nem me lembro quantas) com a minha mãe ao tribunal, porque o meu pai pedia a minha guarda ou a residência alternada. Foram vários processos. E a minha palavra só contou aos 12 anos, quando pude dizer que nem os fins-de-semana alternados eu queria. “Não quero estar com ele nem cinco minutos.” Dessa vez, o juiz ouviu.

Os problemas terminaram aos 14 anos, quando não aceitei mais os seus ataques, nesse dia verbais, contra a minha mãe e a minha avó materna. Enfrentei-o fisicamente. O mundo caiu-lhe. Foi-se embora a praguejar sozinho e nunca mais nos agrediu.

Hoje posso agradecer à minha mãe muitas coisas. O ter saído de casa está no topo da lista. E a violência teve, além das consequências emocionais, duras consequências económicas. Se não passei fome nos primeiros tempos foi porque muitas vezes a minha mãe se esqueceu de comer. As oportunidades que tive na vida vieram da sua vida dura de trabalho, sem férias, fins-de-semana ou feriados durante anos. E tenho outra coisa muito importante a agradecer à minha mãe. Garantiu que eu pudesse fazer as pazes com o meu pai num tempo que foi o meu. Também por isso, este testemunho não é contra ele. É pela quebra dos ciclos de violência que vão de geração em geração.

Que parte deste sofrimento o Estado podia ter terminado mais cedo? É que os danos carregam-se para a vida. Já passaram muitos anos e muita coisa já foi feita na lei do divórcio, na violência doméstica como crime público e, espero, na formação dos polícias e dos juízes para lidarem melhor com estas situações. Mas há muita coisa que não mudou. São ainda as vítimas quem tem de sair de casa e há vítimas por reconhecer. É em defesa das crianças que são, como eu fui, vítimas ‘indiretas’ da violência doméstica que hoje falo.

O Código Penal português ainda não reconhece automaticamente as crianças como vítimas da violência doméstica que ocorre na sua família. Inclusivamente admite que possam não ser vítimas. Mas são sempre. A violência espalha-se pela casa. A violência bate à porta dos novos abrigos.

Especialistas confirmam. Associações e muitos milhares de pessoas defendem que deve ser claro e inequívoco na lei que estas crianças são vítimas. Quando existam processos de violência doméstica, os processos de regulação parental não lhes podem ser indiferentes. A proposta já foi feita e chumbada uma e outra vez. Do que é que estamos à espera para reconhecer as crianças como vítimas?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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