Embaixador António Franco: um homem insubmisso

Conheci-o em Angola, em meados dos anos 80, quando ele era cônsul-geral em Luanda. Foi um dos homens mais livres que conheci.

Talvez fosse do frio. Talvez fosse do medo. Um arrepio súbito subiu-me pela espinha, embora estivéssemos já no início do Verão. Perguntei ao meu amigo Manel se voltaríamos a almoçar com o António. As lágrimas assomaram-lhe aos olhos e eu percebi que também ele tinha frio.

O António Franco, que morreu há dias, aos 76 anos de idade, foi um dos homens mais livres que conheci. Jubilado há 15 anos, depois de ter sido embaixador em Libreville, São Tomé e Brasília, era ocasionalmente procurado por empresários, ministros, ex-presidentes, que queriam a sua intervenção num negócio, numa mediação, num qualquer berbicacho. A todos dizia que não. Mas fazia-o com elegância, quase doçura, e uma profunda segurança. Ele não carregaria as grilhetas dos compromissos a que outros viviam acorrentados.

A lucidez desencantada, mas nunca desinteresse, com que encarava a actualidade vinha-lhe de ter andado, desde muito novo, pelos mais reservados corredores da política portuguesa: amigo e confidente de Melo Antunes, o ideólogo do 25 de Abril; secretário do Conselho de Estado na presidência de Ramalho Eanes; chefe da Casa Civil do Presidente Jorge Sampaio. Lugares que ocupou com a verticalidade, o empenho e o patriotismo que eram a sua marca de água.

Conheci o António em Angola, em meados dos anos 80, quando ele era cônsul-geral em Luanda. Poucos anos mais tarde, viria a desempenhar as mesmas funções em Barcelona, dali regressando a Angola, em 1991, para servir na chamada Comissão Mista, resultante dos Acordos de Bicesse. Tinha tudo o que os angolanos apreciam num diplomata: competência, mundo, humor. Um dia contou-me que certo ministro, aliás pouco sério, procurando impressioná-lo com as suas pretensas preocupações filosóficas, lhe havia dito andar angustiado com a tripla questão nunca respondida: “Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos?” Respondeu-lhe o embaixador: “Pessoalmente, sou o António Franco, venho da embaixada e, daqui a uns minutos, vou para casa.

O António mantinha uma defensiva distância daqueles que têm todas as respostas. Observar e ouvir eram o trabalho a que estava dedicado há anos. Reservava para os amigos mais próximos a conversa aberta e as estórias de guerra, que contava com apreciável talento. Alérgico a tudo o que fosse digital, achava que uma vida inteira não era suficientemente longa para desfrutar as alegrias da família, dos livros, da amizade.

O seu estoicismo ante a doença que, feroz, lhe bateu à porta várias vezes nos últimos anos, era admirável. O António Franco nunca se rendeu. Mesmo depois de um enfisema pulmonar, continuou a fumar até aos seus últimos dias. E comia e bebia sem medos parvos, como se o corpo não estivesse já ferido de morte. Gracejava de tudo: da doença, das comendas, do fracasso. Mas era um riso que trazia ousadia e beleza à sua enferma condição. Na Ana Gomes, sua mulher, tinha uma cúmplice na coragem de quem não se submete.

Woody Allen diz num dos seus filmes que a eternidade demora, “sobretudo lá para o fim”. Quando o desamparo da doença e da dor nos apontam a insignificância universal de tudo, resta-nos o amor e a sua luz.

Ao deixarmos o António, em Colares, na tarde do que viria a ser o nosso último almoço, perguntei ao Manel se aquele frio de Julho iria continuar. Ele respondeu-me que sim. Era a luz do nosso insubmisso Amigo que esmorecia, fugindo já para a eternidade.

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