E quando o coração fica cansado?

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Reuters/MARIO ANZUONI

Uma das principais causas de cansaço após os 70 anos é o aperto da válvula aórtica. A razão é muito simples: é por esta válvula que o coração bombeia o sangue para todo o nosso corpo. Se a válvula estiver apertada a quantidade de sangue que chega aos vários órgãos e tecidos para os oxigenar é menor. Por outro lado o esforço que é exigido ao músculo cardíaco para bombear o sangue pela zona apertada é muito maior, o que a médio/longo prazo pode conduzir a uma insuficiência cardíaca congestiva.

Com o decorrer da idade a válvula aórtica calcifica e, com alguma frequência, fica muito apertada (ou estenótica, na terminologia médica). Se este aperto se tornar grave, limitando severamente a quantidade de sangue que o coração ejecta, o paciente começará a sentir-se mal, incluindo um cansaço para pequenos esforços, falta de ar frequente, dor no peito, sensação de desmaio iminente ou mesmo perda de consciência. A resolução desta situação passa pela substituição da válvula pois os medicamentos não poderão nunca fazer com que a válvula se abra mais. Isto é, o paciente só tem duas opções: ou submete-se à cirurgia convencional de peito aberto ou a uma TAVI.

Na população com mais de 65 anos a prevalência da estenose aórtica – em diferentes graus de gravidade – é de cerca de 7%. Após o início dos sintomas os pacientes com estenose aórtica grave têm uma sobrevivência de cerca de 50% aos dois anos na ausência de substituição da válvula aórtica. Uma estenose aórtica grave tem uma menor taxa de sobrevivência aos cinco anos que muitos cancros metastizados, incluindo os do pulmão, cólon e mama.

A urgência do tratamento desta patologia não é assim, de todo, inferior às das patologias oncológicas pelo que não deve ser adiada; aliás uma das principais causas de morte súbita é a estenose valvular aórtica. Neste sentido, a actual pandemia não justifica qualquer adiamento no seguimento e tratamento da estenose valvular aórtica pois quer as instituições públicas quer as privadas são seguras, com circuitos perfeitamente isolados. Aliás, cinco meses desde o início da pandemia em Portugal não tenho qualquer conhecimento dum doente cardiológico — independentemente do tipo de patologia cardiológica — que se tivesse infectado com covid-19 em meio hospitalar.

A TAVI (acrónimo anglo-saxónico de transcatheter aortic valve implantation) consiste na substituição da válvula aórtica por via duma artéria — geralmente através da virilha pela artéria femoral —, sem recurso à abertura do esterno e, cada vez mais frequentemente, apenas com sedação e anestesia local, isto é, sem anestesia geral.

Este procedimento foi realizado pela primeira vez em França em 2002, contando actualmente com mais de 250.000 implantações em todo o mundo.

Inicialmente foi utilizada nos pacientes que tinham uma contra-indicação para a cirurgia convencional de peito aberto, mas progressivamente foi sendo utilizada nos pacientes com elevado risco cirúrgico e, mais recentemente, nos pacientes com risco cirúrgico intermédio.

Colocada a indicação para TAVI o paciente é admitido no hospital como se fosse efectuar um cateterismo cardíaco. Contudo, como é um procedimento mais invasivo e os pacientes são por norma mais idosos e com mais comorbilidades, costumam ficar em média três a quatro noites no hospital. Isto deve-se sobretudo à vigilância da função renal — muitos destes pacientes tem já algum grau de insuficiência renal pré-procedimento — e ao facto de 15-20% vir a necessitar de pacemaker nos dias subsequentes. Contudo com o aperfeiçoamento da técnica e a sua aplicação a pacientes mais jovens existem já instituições com alta no dia seguinte ou até no próprio dia.

Um assunto muito controverso nesta área é a idade: qual a idade mínima em que se deve considerar uma TAVI? Pessoalmente não acho justificável considerá-la — salvo em casos muito particulares — em pacientes com menos de 75 anos embora líderes mundiais nesta área avancem já com o limite de 70 anos. A questão que aqui se coloca é a durabilidade da válvula implantada por TAVI, pois só temos 18 anos de experiência, ou 16 se considerarmos a via transfemoral. Não obstante, existe um consenso na comunidade cardiológica de que a TAVI irá tornar-se no standard of care no tratamento da estenose valvular aórtica na próxima década. Na Alemanha, por exemplo, desde 2014 que a TAVI já ultrapassou a cirurgia convencional.

Em Abril de 2019, Mick Jagger, com 75 anos, submeteu-se a uma TAVI e um vídeo dele, breves semanas depois, a treinar para a próxima digressão dos Rolling Stones tornou-se viral. Ao que consta não foi por se ter submetido a este procedimento que Jagger deixou de percorrer os cerca de 18 quilómetros que faz em cima do palco em cada espectáculo que dá.

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