Depois da Paula Bobone, é a covid-19 que nos ensina a comer

O autor mais revolucionário a seguir à senhora Paula Bobone é a covid-19. Uma pandemia que ameaça a saúde do mundo, mas que também muda os nossos jeitos à mesa.

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Nelson Garrido

Para mim, e quase como referência cultural, a Paula Bobone é o primeiro nome em que penso quando se fala de etiqueta, especialmente à mesa e na hora das refeições. Sei e imagino que mais autores existem, com novas “modernices” para nos sabermos apresentar na mais alta sociedade, mas o autor mais revolucionário a seguir à senhora Paula Bobone é a covid-19. Uma pandemia que ameaça a saúde do mundo, mas que também muda os nossos jeitos à mesa.

Estamos em mês de caracóis e em toda a minha vida o processo de os comer foi semelhante: em família ou amigos, chega uma travessa ou um pires a rebentar pelas costuras, com caracóis na ponta do prato e na vertigem de cair um ou dois, e lá vamos nós, à mão, cada um com a sua, escolhendo, caracol a caracol, qual o próximo a comer. Hoje já não. As mãos são sagradas e no que eu toco mais ninguém mexe. É um estranho poder, como se todos fôssemos marcar território, mas não, queremos só prevenir o contágio e, para isso, pedimos uma colher. A colher que serve todos, a colher que salva vida. Uma colher heroína. Eis uma história que ainda ninguém quis contar.

Esta colher só tem um problema. Anula o conselho que me deram desde pequenino: “começa com os que têm a cabecinha de fora”. Trocadilhos à parte, escolher cabecinhas, uma a uma, com uma colher de sopa é tão chato para mim como para os outros que me observam enquanto salivam para provar os caracóis. É importante saber que se o leitor não gosta deste petisco pode imaginar amêijoas à Bulhão Pato, também serve. E são as amêijoas que vão ser a nova metáfora desde texto. Também vou conseguir evitar os vários trocadilhos com este alimento ao qual toda a “música pimba” sucumbe.

Tudo se repete nas amêijoas, também com uma colher. Se puder não use a mesma: os molhos juntos podem não ficar assim tão bem. Com a colher ganhamos higiene, mas perdemos risos. Os risos que soltamos quando o primeiro esfomeado ataca a travessa e descobre que a casca está a escaldar. Ganha-se higiene, mas perde-se amor. O amor à primeira vista que a Disney me vendeu na infância — e que Hollywood foi reforçando na minha vida adulta.

Nunca partilhei um prato de esparguete, por isso aquele beijo entre a Dama e o Vagabundo nunca me aconteceu. Acho que tenho mais medo de nódoas na camisa, mas ainda assim é mais um cenário que a covid-19 me tirou. Uma coisa é certa: há amor na comida que se come à mão. Está nos caracóis, nas amêijoas e nos mariscos, nas batatas fritas de pacote, e outros que tais. Hollywood sempre me ensinou que são este tipo de petiscos que fazem com que a mão de dois desconhecidos se toque pela primeira vez, transformando este olhar numa paixão que dura o filme inteiro. Isto é Hollywood, porque no mundo que hoje me mostram um toque ocasional entre mãos apenas gera um olhar desconfortável e uma corrida louca por álcool em gel.

É simples, a covid-19 muda este hábito tão português de petiscos que se comem à mão. No meu caso, vou admitir que há muito tempo que como pizza de garfo e faca, para espanto e julgamento de todos. Mesmo que não partilhe a pizza, procuro os talheres. O mesmo acontece no frango assado, também é raro comer à mão. Mas com caracóis e amêijoas é diferente porque, no fim, podem-se chupar os dedos para aproveitar as últimas gotas de molho. Esta parte é a única em que a covid-19 não tem culpa. Eu não ia fazer isto de qualquer das formas, ainda que, agora que é desaconselhável, seja ainda mais tentador.

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