O Kama Sutra do Círculo de Leitores

No dia em que chegou o Kama Sutra pelas mãos do senhor-de-bigode-simpático-q.b., um livro branco de capa rija (eram quase todos de capa rija nessa época), foi-me interditada a leitura daquele livro pela minha mãe.

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Devia ter uns 11 anos quando decidi trepar o móvel de pinho (material muito na moda no mobiliário dos anos 90; alguns até tinham um bar que fazia canto, mas não era o nosso caso) para aceder a um livro que me tinha sido proibido — o Kama Sutra.

Há vários meses que ali estava, na prateleira mais alta do móvel de casa dos meus pais, inacessível ao meu mísero metro e meio de altura. Foi-me proibido no dia em que, extremamente curiosa, o vi chegar pelas mãos do senhor do Círculo de Leitores. Um homem gorducho e de bigode, simpático q.b., que vestia sempre camisas ligeiramente amarrotadas, e cuja visita me deixava esfuziante de três em três meses.

Era a única forma de entrarem livros na minha casa. Aguardava sempre com grande entusiasmo o dia em que me trazia o que eu tinha escolhido, meses antes, através de um catálogo não muito vasto e com restrições de preço que sempre me foram impingidas. Só tinha direito a escolher os mais baratos do catálogo. Nunca me senti injustiçada por isso, ficava feliz por ainda assim haver dinheiro que chegasse para ter o que ler, mesmo que fossem os mais baratos da lista. No dia em que chegou o Kama Sutra pelas mãos do senhor-de-bigode-simpático-q.b., um livro branco de capa rija (eram quase todos de capa rija nessa época), foi-me interditada a leitura daquele livro pela minha mãe, que ao mesmo tempo me entregou algo que eu esperava há meses — o livro da Alice Vieira, Rosa, Minha Irmã Rosa. A minha irmã tinha apenas 12 meses e não hesitei em escolhê-lo no catálogo, depois de ter lido a sinopse e de ter visto o preço, que era aceitável. Estava-me destinado, parecia a minha biografia.

Pois bem, voltando ao Kama Sutra. Naquela tarde, sozinha em casa (os meus pais estavam no trabalho e a minha irmã na creche), subi o móvel da sala e saquei o livro proibido. Sentei-me no sofá e comecei a folheá-lo. Lembro-me de ficar bastante chocada ao deparar-me com as primeiras ilustrações. Mas o que era aquilo? Nunca tinha visto nada tão explícito. Tinha ouvido falar de relações sexuais, sim, mas nunca tinha acedido a nenhuma espécie de material gráfico. Ali desenhados estavam homens e mulheres, falos dentro de vaginas, posições estrambólicas de coito (na altura, nem sabia o que era um coito). O mais estranho foi ter começado a sentir calor junto ao sexo. Foi realmente bizarro. Ainda vi mais uma ou outra imagem de coito na posição de ponte ou de gatas, como um cão ou um gato, mas apressei-me a trepar de novo o móvel da sala para ir guardar o livro no seu lugar.

Fiquei perturbada e arrependida por ter ido mexer onde não devia. O livro era realmente esquisito, não gostei nada de ver aquelas imagens. Ficaram-me na cabeça durante meses, como uma assombração de algo que não entendia muito bem, e que tinha tido um reflexo físico em mim, sem que eu tivesse tido controlo sobre isso. Passou algum tempo até me esquecer disso, só me lembrava quando recebíamos à porta o senhor do Círculo de Leitores. Sempre que olhava para a sua camisa amarrotada, esticada na zona dos botões pela força da barriga proeminente, lembrava-me do dito livro. Ainda hoje me lembro, quando vejo algum homem parecido com o funcionário do Círculo de Leitores.

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