A causa e o efeito da pandemia da desinformação

Se a desinformação representa este risco, veloz e de grande alcance, não resta outra via que não a de uma incomplacente análise crítica sobre a informação que nos aborda. Uma que renuncie o quanto possível aos nossos vieses cognitivos e ao apelo da emoção.

Napoleão teria estado mais próximo de invadir Inglaterra não fosse a evidência epidemiológica disponível à data [1]. Cerca de dois séculos depois, numa altura em que a quantidade de informação não encontra precedente na história, um vírus invadiu rápida e facilmente o mesmo país, muito a reboque de um governo que preferiu ignorar o que o conhecimento epidemiológico indicava.

A meio do século XVIII, James Lind protagonizou o primeiro ensaio clínico da história. Com recurso a elementos metodológicos ainda hoje utilizados nos ensaios clínicos de vacinas para a covid-19, este médico inglês demonstrou que o consumo de citrinos atrasa a progressão do escorbuto [2]. Esta prova científica sustentou mais tarde a introdução destes frutos na dieta da marinha britânica, permitindo assim uma maior permanência no mar e uma linha de defesa marítima que terá sido preponderante para recuar Napoleão nas suas ambições. Em boa altura, alguém no poder teve o discernimento necessário para considerar a prova epidemiológica que havia sido disponibilizada.     

Este ano, o povo britânico não parece ter sido tão amparado pelo discernimento. Preferindo ignorar o que a maioria dos dados científicos indicavam, ou, pelo menos, escolhendo aqueles que mais lhe convinha adotar, o governo britânico tomou uma série de decisões que escancararam as portas do país ao coronavírus. Um impasse que custou, em poucas semanas, mais de 30 mil mortos, na dianteira dos piores resultados nesta pandemia, apenas suplantados pelos dos Estados Unidos, nação atualmente liderada por negacionistas. É este o efeito nefasto da desinformação.

Um século depois da experiência de Lind, noutra geografia, Ignaz Semmelweis demonstrou a importância daquele que tem sido o hábito mais frequente nos últimos tempos, nem mais nem menos do que lavar as mãos. Este médico húngaro provou como um ato tão corriqueiro pode salvar vidas, incontáveis. Para tal, basta tão-somente seguirmos o que a melhor evidência nos aponta e destrinçá-la da desinformação.

As causas da desinformação podem ser múltiplas, desde a manipulação do populista ao ato mais inconsciente do anónimo que pretende tornar viral uma brincadeira de mau gosto. Pode similarmente derivar do senso comum (não necessariamente bom senso), tal como entendido por Bachelard, um engodo de explicações mais fáceis, de continuidade com o pensamento vigente, que cristalizam o engano e atrasam o avanço da ciência (Semmelweis foi ridicularizado pelos próprios colegas e não viu em tempo de vida a aceitação da sua prova).

Algo, porém, é menos diverso que as causas da desinformação – a sua taxa de contágio! Há não muito tempo, mas ainda na era “pré-covid-19”, um grupo de investigadores do Massachusetts Institute of Technology publicou na prestigiada revista Science a velocidade de propagação da mentira online, para tal focando-se na rede social Twitter. Em todos os parâmetros examinados, as fake news, nomeadamente as relativas à ciência, propagam-se muito mais rapidamente do que as notícias verdadeiras e acabam por ter maior alcance e abrangência. Os autores concluem ainda que esta “virulência” deve-se sobretudo às pessoas, não aos algoritmos [3], que curiosamente parecem mais “imparciais” a espalhar as notícias. Os robots não sofrem de vieses cognitivos. Estudos confirmam que as pessoas privilegiam informação que vá ao encontro do que desejam ou que confirme as suas opiniões e crenças pré-existentes (viés de confirmação). Claro que na virulência da desinformação, emoções como o repúdio, o medo ou a surpresa são também vetores de transmissão de fake news.

Muito há ainda por compreender sobre “epidemiologia da desinformação”, mas parece certo que somos facilmente contagiados pela mentira. Como as teorias da conspiração, que germinam na internet e que parecem inofensivos guiões hollywoodescos, qual inócuo passatempo para desentorpecer do confinamento, mas que na verdade têm um lado muitíssimo perverso – talvez sem intenção, conspiram para estorvar o controlo da pandemia.

No método científico, o pior dos erros quando se testam hipóteses é “descobrir” algo que na realidade não existe (um falso positivo – tecnicamente designa-se de erro do Tipo I). É preferível não ter informação nenhuma a dispor de uma errada. Aquela que nos indica o mau caminho, que dilui a verdade num mar de falsas conjeturas. É, por exemplo, “demonstrar” a eficácia de um produto inerte, ou “desvendar” uma falsa causalidade (na área da nutrição encontram-se muitos casos destes). Recorrendo à analogia de Bertrand Russell, seria “descobrir” um bule de chá que orbita o nosso planeta.

As fake news e as teorias da conspiração não testam hipóteses como no método científico, confirmam antes logros e alucinações. Para tal, vasculham a (des)informação necessária para fazer valer os seus “falsos positivos”. As redes sociais, por seu turno, são as sirenes que propagam rapidamente estes falsos alarmes, esse ruído que cala a informação útil. Ainda há poucos dias foi publicado na revista Nature um estudo que mostra como na “competição online” no Facebook os grupos antivacinas saem vitoriosos na sua campanha de desinformação.

Se a desinformação representa este risco, veloz e de grande alcance, não resta outra via que não a de uma incomplacente análise crítica sobre a informação que nos aborda. Uma que renuncie o quanto possível aos nossos vieses cognitivos e ao apelo da emoção.

Precisamos também deste hábito de “higienização” sobre a falsidade que nos interpela permanentemente. Confinar a propagação de fake news e teorias da conspiração, criar “cordões sanitários” nos focos da mentira e interromper as suas cadeias de transmissão secundárias. Reencaminhar a desinformação é dar-lhe velocidade e alcance. Esta é também uma responsabilidade individual que a todos concerne. Certamente, não fazer como o governo britânico, ignorando o problema e aguardar por um género de “imunidade de grupo”.

Durante esta pandemia é fundamental recorrermos a fontes fidedignas de informação. Desde os organismos públicos dedicados à luta contra a covid-19 (por exemplo, https://covid19.min-saude.pt/), à própria Organização Mundial da Saúde (https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019) e ao Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (https://www.ecdc.europa.eu/en/covid-19-pandemic). Por fim, é também desejável que se privilegie a evidência que seja gerada pela Academia e os Centros de Investigação que tenham reconhecidamente os recursos e o expertise na área, nomeadamente da epidemiologia e saúde pública.

A adoção dos resultados do ensaio clínico de Lind teve o seu efeito, mas foi bastante demorada (cerca de 50 anos mais tarde). Na falta de um cenário contrafactual, que mostre o percurso da História decorrente da mudança de um evento passado, houve quem refletisse sobre o benefício perdido para Inglaterra por este atraso. É que durante esses 50 anos muito aconteceu. Por exemplo, o que teria acontecido ao processo de independência dos Estados Unidos com uma marinha britânica mais eficaz, aquela que mais tarde sairia vitoriosa na Batalha de Trafalgar [4]?

É que há sempre um preço a pagar quando nos afastamos de decisões baseadas na evidência. No enredo da causa e do efeito da desinformação chegam a perder-se batalhas que são irrecuperáveis. E isso não é nenhuma fake news.

Pedro Laires Epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública – Universidade NOVA de Lisboa
Carla Nunes Estatista e Diretora da Escola Nacional de Saúde Pública - Universidade NOVA de Lisboa

[1] https://www.nationalgeographic.com/culture/food/the-plate/2014/10/01/history-lemons
[2] Twyman R A., A brief history of clinical trials.2004. Bhatt A., Evolution of Clinical Research: A History Before and Beyond James Lind
[3] The spread of true and false news online. Vosoughi S, Roy D, Aral S. Science. 2018 Mar 9;359(6380):1146-1151
[4] C.C. Lloyd, The Conquest of Scurvy. The British Journal for the History of Science. 1963 Loyd CC, Victualling of the fleet in the eighteenth and nineteenth centuries. In: Watt J, Freeman EJ, Bynum WF, eds. Starving Sailors: The Influence of Nutrition upon Naval and Maritime History. London: National Maritime Museum; 1981:9–15 (12)

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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