Estrutura para o conhecimento do território levanta dúvidas e merece reparos por parte das associações do sector florestal

Depois de várias tentativas, Portugal prepara-se para dar os primeiros passos rumo a um cadastro predial que permitirá a aplicação de políticas públicas mais eficientes ao nível do ordenamento do território. A pouca informação disponibilizada tem dado azo a dúvidas e incertezas.

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ADRIANO MIRANDA

A questão é antiga, e a ela se volta sempre que o assunto visa a floresta. Apesar das diversas tentativas, Portugal continua a não dispor de um cadastro predial que permita a identificação e caracterização das propriedades existentes no território nacional. Uma lacuna, dizem os especialistas, com consequências em várias áreas de actuação, mas em especial ao nível do ordenamento do território. Com o intuito de pôr termo à questão, o Governo anunciou criação da Estrutura de Conhecimento do Território, cujo principal objectivo é “garantir a expansão a todo o território nacional do sistema de informação cadastral simplificado”, aprovado na Assembleia da República em Julho de 2019.

Sobre o funcionamento da nova estrutura pouco se sabe, para além de que deverá dar seguimento ao projecto-piloto iniciado em Novembro de 2017 e que contemplou dez municípios (Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis, Pampilhosa da Serra, Penela, Sertã, Caminha, Alfândega da Fé e Proença-a-Nova), todos atingidos por grandes fogos que deflagraram nesse ano.

Vítor Poças, presidente da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, diz não perceber “muito bem qual o objectivo dos ‘peregrinos’” que defendem a criação de mais uma estrutura de missão para conhecer o território português quando, contesta, “quem melhor do que câmaras municipais e as juntas de freguesia para conhecer o território e os seus proprietários?”. A Confederação Nacional de Agricultura (CNA) vai mais longe e culpa mesmo os “sistemas cadastrais, simplificados ou não”, por um processo que visa “responsabilizar, com maior facilidade, os proprietário e produtores florestais”. Os “sistemas cadastrais mais recentes”, acrescenta, “até têm subjacente a intenção – escondida – de se espoliar, primeiro ‘na secretaria’ e depois na prática, o direito de propriedade dos pequenos e médios proprietários a pretexto da utilização das respectivas parcelas rústicas para promover a concentração da terra. A tendência dominante é mesmo para se penalizar os proprietários a pretexto, nomeadamente, da alegada prevenção dos fogos rurais.” Já a Confederação Nacional da Agricultura (CAP), por não ter participado na discussão do diploma, afirma que “nada se conhece sobre os termos em que esta estrutura de missão é criada e funcionará”.

Em 2017, a opção pelo modelo “simplificado” visava privilegiar o cruzamento de informação já existente nos organismos da administração pública, assim como a possibilidade de os registos das propriedades poderem ser feitos gratuitamente através do Balcão Único do Prédio (BUPi), plataforma disponível em formato físico e digital. Segundo os resultados apresentados no relatório de avaliação, a experiência permitiu georreferenciar 51,3% da área dos concelhos envolvidos.

No entanto, a transferência para a totalidade do território português de um projecto-piloto pensado originalmente para uma dezena de municípios levanta questões várias, ao nível da operacionalidade do sistema, da sua relevância jurídica e do rigor técnico incutido. Ricardo Bento, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro na área de planeamento e ordenamento do território, defende que, apesar de “urgente”, o processo deve ser feito “com cautela”. “É preciso dar passos seguros, sob pena de implementarmos um sistema de forma bastante simplificada e pouco capacitada.”

Numa primeira fase, defende, seria importante que, quando o sistema fosse “generalizado”, já incorporasse “tudo o que é informação relativa ao domínio público”, de forma a “salvaguardar” o património do Estado perante situações de delimitação com particulares. No que diz respeito à inclusão de informação que esteja já na posse de organismos públicos, o especialista mostra-se especialmente optimista. “O Estado tem muita informação de cadastro feito, daquilo que é a sua propriedade ou que entretanto organizou.”

O que parece não ter sido acautelado é a capacitação dos municípios com técnicos capazes de responder às dúvidas colocadas pelos proprietários quando estes se dirigem aos BUPi para fazer a delimitação dos seus polígonos. Esta foi, aliás, uma das preocupações expressas por Ricardo Bento quando, em Março de 2019, participou numa audição pública realizada na Assembleia da República precisamente sobre a expansão do sistema de informação cadastral simplificada quando este ainda carecia de aprovação parlamentar. Desde então, “pouco passos” foram dados nesse sentido. “Vamos precisar de equipas que possam responder, registar e certificar o que está apresentado no sistema, isto com a chancela de um técnico devidamente qualificado.”

As falhas de rigor posicional nas delimitações representam outra das ressalvas que o professor universitário faz ao sistema de informação cadastral simplificada, devido aos “sérios riscos de conflitos jurídicos e judiciais posteriores a este processo”. “O conceito de posse, de propriedade da terra é quase sagrado em Portugal, por isso é preciso ter algum cuidado quando simplificamos em demasia este processo.” Neste âmbito, o papel do Estado enquanto proprietário terá também de ser esclarecido, já que a votação no Parlamento estabeleceu a transferência dos terrenos sem dono para gestão pública, assim como a possibilidade de venda dos mesmos ao fim de 15 anos.

Perante este conjunto de ressalvas, Ricardo Bento prefere que o novo sistema de informação cadastral simplificada seja olhado como um “pré-cadastro”, “uma via simplificada para tentar fazer um exercício de aproximação, mas que peca “pela falta de rigor técnico, geométrico e de precisão”. A comunicação com a população deve, no entender do próprio, ser feita precisamente neste sentido, sob pena de muitas pessoas não participarem por acharem que, “para efeitos registrais”, o sistema tem “validade jurídica de cadastro”. Algo que só poderá acontecer se “todos os proprietários confrontantes com determinada parcela registada no BUPi declararem que os limites dessa parcela estão correctos”.

O próximo passo deverá passar por “incorporar mais precisão geométrica na delimitação da posse”, ou seja, “passar de um somatório global dos polígonos que possam existir para a correcção das sobreposições e conflitos” que tenham surgido. “Só à medida que forem introduzidos processos, só à medida que os proprietários forem aceitando que as extremas e as confrontações estejam correctas é que nós podemos saber se daqui, deste pré-cadastro, sai algum cadastro de facto. E isso vai demorar o seu tempo”.

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