De Tamão à coragem para dizer não!

Portugal não pode fazer declarações vazias de preocupação com o que se passa em Hong Kong e depois assinar novos acordos comerciais com Pequim. Usando um pouco de sabedoria chinesa, o filósofo Xunzi afirmava: “Aquele que tentar percorrer dois caminhos ao mesmo tempo, não irá chegar a lado nenhum.”

Em Maio de 1513, precisamente há 507 anos, o explorador português Jorge Álvares torna-se o primeiro Europeu a chegar à China por via marítima, atracando num território que viria a chamar Tamão, pensa-se que fosse um aportuguesamento de Tuen Mun, actual Hong Kong.

Começava assim a relação entre o Reino de Portugal e a China Ming, a relação entre os dois países sempre foi uma relação cordial, que vivia sobretudo do comércio e da aprendizagem entre ambos os povos. Em 1557, Portugal estabelece com a China um acordo que garante ao país o território de Macau, onde permaneceria até 1999.

Ao longo dos séculos Portugal nunca teve conflitos com o Estado chinês. Nem a rebelião Boxer no dealbar do século XX, que opôs a China a praticamente todas as potências coloniais da época, inclusive a países com parca presença na região como Espanha, Holanda, Bélgica ou o Império Austro-Húngaro. Até potências não coloniais stricto sensu como o Japão e a Rússia se envolveram no conflito. Apenas um país com interesses regionais não o fez, Portugal, e a China, em particular o povo chinês, nunca se esqueceu disso.

Se é verdade que os portugueses nunca tiveram problemas com o povo chinês, também é um facto que após a Guerra Civil Chinesa e consequente vitória das forças comunistas lideradas por Mao Tsé-Tung, em 1949, o Estado Novo deixou de ter relações com o gigante asiático, relações que apenas reataram em 1979. Em 1987, foi acordada a transferência de Macau para a China, que se daria a 20 de Dezembro de 1999.

Desde então muito mudou, mas não a forma como o regime chinês actua para com os seus cidadãos, que desejam mais liberdade. Em 1989, no Massacre de Tiananmen, o Comité Central do Partido Comunista Chinês já tinha dado um sinal claro que não iria tolerar quaisquer tentativas de democratização da China, mas o seu controlo em Hong Kong não era absoluto e isso enfurecia a liderança chinesa. Havia de facto dois territórios chineses onde a população tinha liberdade de expressão e tradição democrática. E se é verdade que Macau era muito mais pequeno demográfica e territorialmente falando, Hong Kong, com 7,5 milhões de habitantes que estavam habituados a viver numa democracia liberal, onde se podia dizer o que se pensa e onde a carta do desenvolvimento económico que Pequim poderia proporcionar não funcionava, era uma afronta a Pequim.

Os desejos de hegemonia do Império do Meio iriam, mais tarde ou mais cedo, chocar com a democracia de Hong Kong, bem como o estatuto de Taiwan, que continua a ser o ponto mais fulcral na “política externa” chinesa (e coloco aspas de propósito, pois se Taiwan é de facto independente, tanto a China como Taiwan reclamam o território do outro, bem como o legado histórico da China).

Tudo começou em Março de 2019 quando Pequim quis introduzir uma lei de extradição que permitiria enviar presos políticos de Hong Kong para a China, e, sabendo qual seria o destino final de alguém que criticasse o regime, os habitantes de Hong Kong começaram a protestar massivamente, em defesa dos seus direitos e liberdades. As imagens destes protestos passaram em todas as televisões do mundo, mas Pequim não desistiu, chegando mesmo a enviar o Exército para a fronteira com Hong Kong por forma a pressionar a população local. A situação continuou a escalar e os protestantes têm hoje cinco grandes exigências:

  • A completa remoção da proposta de lei de extradição;
  • Retratação da caracterização dos protestos como “tumultos”;
  • Libertação e exoneração dos presos políticos;
  • Criação de uma comissão independente de inquérito sobre o comportamento policial;
  • Sufrágio Universal para as eleições do Conselho Legislativo e chefe do executivo.

Os episódios mais recentes de violação dos direitos democráticos na região levaram a que a facção pró-democrática tenha sido removida à força do Conselho Legislativo durante um debate onde a facção pró-comunista pretendia criminalizar o desrespeito ao hino chinês. E, ainda mais recentemente, o governo da região ordenou a suspensão do programa televisivo “Headliner”, famoso entre os habitantes de Hong Kong por evidenciar as injustiças que o Estado aplica sobre os cidadãos.

Dennis Kwok, um deputado pró-democracia, avisava no seguimento do anúncio que a China pretende aplicar uma lei de segurança nacional no território: “É o fim de Hong Kong, o fim do princípio Um País, Dois Sistemas.” Princípio constitucional este que deveria terminar apenas em 2047.

Tendo tudo isto em conta, Portugal continua a olhar para o lado como se nada se passasse. É verdade que não está a ocorrer em Macau, mas infelizmente a diplomacia portuguesa já nos habituou à sua prostração perante qualquer entidade que nos atire umas patacas pelo nosso silêncio.

Não estará na hora de Portugal ter uma atitude diferente e respeitável? Sem dúvida que a China é um mercado gigantesco e apetecível, mas temos de estar cientes que manter relações comerciais com a China hoje em dia significa apoiar o fim da democracia em Hong Kong, significa apoiar os campos de reeducação à minoria muçulmana Uigure na província de Xinjiang, significa apoiar a perseguição dos apoiantes do Dalai Lama no Tibete, significa a tentativa de conquista do Mar do Sul da China, significa também apoiar o neo-colonialismo económico chinês em vários países de África e, finalmente, significa apoiar as ditaduras que recebem ajuda económica e militar de Pequim.

As Democracias Liberais devem estar unidas na luta contra todo o tipo de autoritarismos e a verdade é que não nos podemos dar ao luxo de compactuar com tais regimes, sob pena de um dia dependermos inteiramente deles. Esta não é uma luta contra o povo chinês, é sim também pelo povo chinês, para que um dia possam ser tão livres quanto os habitantes de Hong Kong e Macau já foram.

Se o Mundo Ocidental se unir em torno dos valores democráticos que nos caracterizam, certamente que Pequim será obrigada a repensar a sua estratégia, e os habitantes de Hong Kong, Macau, Taiwan, Xinjiang ou Tibete saberão que não estão sozinhos.

Portugal não pode fazer declarações vazias de preocupação com o que se passa em Hong Kong e depois assinar novos acordos comerciais com Pequim. Usando um pouco de sabedoria chinesa, o filósofo Xunzi afirmava: “Aquele que tentar percorrer dois caminhos ao mesmo tempo, não irá chegar a lado nenhum.”

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