Os perigos do desconfinamento a todo o gás

Se até agora os exemplos de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa eram merecedores de toda a confiança, caso seja necessário dar um passo atrás e voltar aos dias de chumbo do confinamento, haverá quem os queira ouvir?

Há apenas duas semanas, as imagens da Costa da Caparica captadas por Daniel Rocha e descritas por Cristiana Faria Moreira teriam dado a um escândalo nacional. Ontem, ainda havia quem suspeitasse de que aquela imensa mole humana em cima da areia da praia fosse um retrato do ano passado. Mas, mesmo com surpresa, uma praia apinhada de pessoas não deu origem a grandes preocupações. Aceita-se que, depois de dois meses de ansiedade, medo e confinamento os portugueses tenham o direito a gozar os prazeres do sol e do mar. Aceita-se que queiram regressar à vida normal e que o façam com especial zelo e satisfação.

Há nesta súbita mudança em menos de duas semanas uma dúvida que poderá ter consequências na forma como vamos enfrentar os longos meses de coexistência com a covid-19: ou vivemos excessivamente confinados até há duas semanas, mostrando cuidados e receios que não se justificavam; ou estamos a expor-nos excessivamente aos riscos que continuam no ar. Entre o primeiro e o segundo momento, há uma óbvia falta de coerência e de senso. Mesmo que, para nossa felicidade, as famosas curvas continuem achatadas, nada mudou assim tão significativamente para que em tão curto espaço de tempo tivéssemos passado das cidades vazias às praias apinhadas.

Não se trata de censurar a liberdade dos cidadãos em agirem como bem entendem. Nem de lhes apontar comportamentos irresponsáveis, que, apesar das multidões, parecem não ter existido. Trata-se, sim, de questionar o alcance político dos incentivos e dos exemplos do primeiro-ministro e do chefe de Estado, que, depois do apelo ao confinamento drástico, entraram na apologia do desconfinamento total. Bem pode o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, pedir cautelas, convidando as pessoas a “protegerem-se” e a “protegerem os outros”, avisando que “desconfinar não é descontrair”. Se o Presidente e o primeiro-ministro vão à praia, então por que não havemos de ir também?

Criado o estado da normalidade plena após a emergência e a calamidade, suspeitamos do que possa estar para vir: negligência e lassidão. O novo normal que nos anunciaram não era isto, nem pode ser isto. Não se trata de uma questão de moralismo, nem de complexos securitários. Trata-se apenas de tentar definir uma linha no tempo, medir o que o país conquistou e garantir a gestão dessas conquistas. O que nos anunciaram como uma necessária transição lenta está a transformar-se numa corrida desenfreada. Se até agora os exemplos de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa eram merecedores de toda a confiança, caso seja necessário dar um passo atrás e voltar aos dias de chumbo do confinamento, haverá quem os queira ouvir?

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