E depois do adeus… à pandemia, que medidas por cá na Saúde?

O SNS mais uma vez mostrou que é a jóia da nossa República e que sem ele estaríamos hoje numa situação social e humana dramática, como está bem patente noutros países.

Sendo, naturalmente, ainda cedo para tirar conclusões definitivas deste violento embate viral, existem, no entanto, aspectos que permitem já estabelecer algumas ilações muito claras.

Desde logo, o comportamento de governantes de diversos países que tem revelado um profundo desprezo pelos valores da vida humana ao ignorarem os perigos brutais desta pandemia, ao demorarem inexplicavelmente a adopção de medidas de confinamento social, ao mostrarem uma quase exclusiva preocupação com a abertura da economia, independentemente de quantos morrem, e ao defenderem a chamada “imunidade em grupo”. Refiro-me, sobretudo, a países europeus, porque do outro lado do Atlântico existem uns casos extremos de aberração política e humana a roçar a delinquência.

Ao longo do tempo, houve várias pessoas que por muito menos foram julgadas por genocídio no Tribunal Penal Internacional.

Os governantes da Grã-Bretanha e da Suécia destacaram-se na defesa da tal imunidade em grupo, numa intolerável concepção ariana de experimentação em massa. Ainda recentemente um epidemiologista sueco que colaborou na elaboração deste plano, afirmou a este jornal que o confinamento deveria ser voluntário, que era demasiado cedo para contar o número de mortes e que no final o número de mortes seria quase o mesmo em todos os países europeus. Ou seja, esta atitude levada às últimas consequências significa que não interessa que morram os velhos e os fracos, porque os que sobreviverem ficam mais à vontade sem esses “empecilhos”.

Perante o estrondoso fracasso destas políticas, esses governantes e dirigentes políticos não têm, sequer, a coragem de assumirem agora as suas responsabilidades e têm vindo a inventar argumentos e bodes expiatórios, nomeadamente acusando a China de inventora do vírus e a OMS de demora na reacção.

Sobre a China, não existe, para já, nenhuma evidência dessa fabricação laboratorial, como reconhecem, aliás os próprios serviços americanos de informação, mas está a servir como arma propagandística de Trump para evitar um castigo eleitoral lá mais para o fim deste ano.

Quanto à OMS, importa lembrar que se trata de uma importante organização internacional com uma forte componente de funcionamento colegial. O Conselho Executivo da OMS é presidido, pasmem-se, pelo Brasil. O director-geral da OMS é eleito, segundo os estatutos, por, pelo menos, 2/3 dos votos de todos os países integrantes da sua Assembleia Geral. Ainda estamos todos bem lembrados dos sucessivos alertas desta organização, sistematicamente ignorados por muitos governantes.

Outro aspecto que merece ser referido é a forma de contabilização das mortes que na maior parte dos países só era feita até há pouco tempo em meio hospitalar.

Para além das questões referidas, esta pandemia tem constituído um teste dramático à vitalidade dos sistemas de saúde e das políticas sociais em geral.

Na Europa, os casos mais marcantes têm sido a Inglaterra, mais concretamente, porque a Escócia tem dinamizado o seu serviço nacional de saúde e há largos anos que pôs termo às PPP, que ao longo das últimas décadas tem desenvolvido uma política de neoliberalismo selvagem de desmantelamento do seu NHS com a privatização de segmentos cada vez mais amplos dos seus serviços prestadores em favor de multinacionais americanas, a França, onde nos últimos anos têm existido um marcado subfinanciamento dos serviços públicos de saúde com muitos deles a entrarem em ruptura sistemática, a Espanha com o uso e abuso de soluções privatizadoras e de enfraquecimento das suas políticas públicas, bem como a Itália onde tem acontecido o mesmo, que têm sentido dificuldades muito acrescidas para travar este combate.

E no caso dos Estados Unidos, paradigma inspirador dos negociantes da saúde, vejamos o cataclismo sanitário e humano que está ali em desenvolvimento. Até os testes de despiste têm de ser pagos pelas pessoas.

No nosso país, o governo foi um dos primeiros na Europa a reagir com medidas enérgicas, têm sido contabilizadas, desde o princípio, todas as mortes, incluindo as ocorridas em lares, tem havido uma presença constante e pedagógica junto dos nossos cidadãos por parte da equipa ministerial da saúde e existe a particular vantagem de dispormos de um dinâmico Serviço Nacional de Saúde (SNS) dotado de um conjunto de profissionais empenhados e altamente qualificados, que possuem uma tradição humanista inquestionável.

Esta pandemia mostrou também que os cidadãos podem conseguir viver sem outras actividades, mas sem a Saúde é impensável. O SNS apareceu aos olhos de todos como o elemento estratégico capaz de lhes defender a vida. E dentro do sector da Saúde, a Saúde Pública e a Medicina do Trabalho tornaram mais visível a importância das suas funções.

A Saúde Pública tem mantido no terreno muitas equipas multidisciplinares, num trabalho de “formiguinhas" incansáveis na detecção e interrupção das cadeias de transmissão.

Que outro país europeu dispõe deste tipo de trabalho? Que outro país europeu tem uma carreira médica específica de saúde pública? O que têm são epidemiologistas de gabinete que elaboram muitos modelos teóricos que na maior parte dos casos se estilhaçam ao confrontarem-se com a realidade.

Quanto à medicina do trabalho, as empresas onde ela existe e está adequadamente estruturada, verificou-se um trabalho preventivo específico a cada sector laboral muito mais eficaz.

Como é possível virem a verificar-se, no futuro próximo, novas situações epidémicas com este ou com outros vírus, depois deste confronto os serviços de saúde têm de ser reorganizados de tal forma que perante novas ameaças seja somente “carregar no botão “.

O SNS tem de ser objecto de uma imediata abordagem global que organize os seus serviços em função dos objectivos definidos, que tenha bem presente que os sectores, como é o caso da saúde, onde se processa uma contínua incorporação tecnológica têm de adoptar novas formas de organização da produção e do trabalho e que estabeleça uma cultura gestionária transparente, avaliada, com prestação pública de contas.

Por outro lado, as carreiras dos profissionais de saúde têm de ser tornadas urgentemente atractivas porque sem eles nada funciona.

Os vírus e os outros atentados à saúde, a única coisa que lhes mete medo são os profissionais de saúde. Nesta abordagem global, não pode ser mais adiada a delimitação dos sectores prestadores de cuidados de saúde. E esta delimitação, ao contrário do que é habitual ouvir, não passa só pelos regimes laborais de dedicação exclusiva. A primeira e nuclear medida a tomar é acabar com o desvio do dinheiro dos contribuintes para financiar os negócios privados na saúde.

Mesmo nos anos de maior fervor e entusiasmo revolucionários após a reconquista da democracia e da liberdade em Abril de 74, nunca nenhuma força política parlamentar colocou em causa o funcionamento de entidades privadas neste sector.

O que está em causa não é existirem, como é natural, entidades privadas a desenvolverem a sua legítima actividade. Estas entidades têm de se sujeitar às regras da competição de mercado, que elas tanto idolatram verbalmente, e deixarem de parasitar os dinheiros públicos. O que é escandaloso é existir subfinanciamento crónico do SNS e depois parte do nosso dinheiro de contribuintes ainda ser dirigido para os bolsos de accionistas privados que nalguns casos até vão pagar os seus impostos noutros países.

O SNS, mais uma vez mostrou que é a jóia da nossa República e que sem ele estaríamos hoje numa situação social e humana dramática, como está bem patente noutros países. O SNS é o principal factor de equidade social e um dos pilares centrais do Estado Social. Nos seus direitos de Dignidade Humana, coloca-se a todos os povos do mundo o seguinte dilema: Civilização ou Barbárie.

Sugerir correcção