Estranha forma de vida

Um setor cultural fragilizado e precário não poderá continuar a ser uma realidade prevalecente. O reconhecimento do estatuto de intermitência nas artes do espetáculo nunca foi tão urgente. É preciso implementá-lo sem demora.

Este ano, as comemorações do Dia Mundial do Teatro (27 de março) e do Dia Mundial da Dança (29 de abril) acontecem com os artistas confinados nas suas casas, contribuindo para um ato de cidadania maior, inevitável no combate à covid-19.

Normalmente celebrados com programações especiais, debates, declarações e outras iniciativas, estes dias mundiais são agora discretamente assinalados através de iniciativas online que vão mantendo as instituições culturais ativas e conectadas com os seus públicos. Se agora é através de sites e de redes sociais que a interação triangular entre teatros, artistas e públicos se concretiza, todos sabemos que estamos a adiar algo que é a essência das artes performativas: o aqui e o agora, o confronto físico, emocional e intelectual, entre quem faz e quem observa, e o carácter simbólico do Teatro como assembleia e espaço de partilha. Tudo isto está protelado e, ainda que o esforço de passarmos para o online prove a capacidade de invenção do setor cultural, não será a internet que nos vai salvar.

Os tempos são de exceção e a comunidade artística portuguesa tem tentado encontrar uma bússola para navegar no meio dos adiamentos de espetáculos (inevitavelmente para uma temporada 20/21 a redesenhar), das linhas de apoio (estatais ou privadas) e dos inúmeros decretos-lei que o Estado tem lavrado para o setor cultural. Muitos desses decretos têm sido, e bem, revistos à luz da reivindicação de uma classe artística que, mais do que nunca, deve falar a uma só voz. Esta pandemia apanhou o setor “na curva”. A precariedade e a desregulação social e contributiva têm deixado grande parte dos trabalhadores sem chão, revelando a instabilidade dos alicerces que nunca se conseguiram cimentar. Se em tempos ditos “normais” já era difícil, em tempos de pandemia torna-se insustentável: as mudanças no pós-covid-19 terão de ser estruturais e aceleradas.

Nenhuma alteração poderá ser reestruturada sem ser pela base, que é constituída por pessoas com profissões específicas. São profissionais independentes que trabalham para várias entidades, sendo a regularidade do seu trabalho intermitente. Note-se que os artistas, quando não estão em ensaios ou espetáculos, transformam-se em pesquisadores, produtores, agentes ou gestores, num quotidiano multitasking desafiador e exigente. Poderão alguns pensar que esta é uma estranha forma de vida, mas existem diferentes formas de vida e diferentes formas laborais que, num Estado democrático, têm de ser reconhecidas.

Porque é que um artista, quando está desempregado, não recebe subsídio de desemprego? Ou porque é que só o receberá se trabalhar mais do que 50% para um só empregador (algo raro neste setor)? Se a especificidade for precisamente trabalhar para diferentes entidades empregadoras, porque deve um profissional do espetáculo ser penalizado nos seus direitos sociais?

Numa altura em que o subsídio de desemprego e o layoff não são possibilidades atenuantes para grande parte do setor, urge resolver algo que tem sido, governo após governo, ministro após ministro, protelado: o estatuto de intermitência socioprofissional para os trabalhadores do setor independente das artes do espetáculo, um regime de proteção social condizente com as particularidades do seu trabalho, intermitente e multipatronal. Em qualquer situação encontrada, o valor a auferir nunca deveria ser menor do que o salário mínimo nacional e baseado no histórico contributivo de cada um. Só assim se terminaria a relação errática com a Segurança Social, com a qual os trabalhadores do setor artístico se veem forçados a pagar prestações mínimas que penhorarão, no futuro, as suas reformas.

Este modelo está hoje implementado em vários países e foi longo o caminho negocial para se encontrar um sistema justo que proteja estes profissionais em situações de desemprego, reforma ou algo tão elementar como a licença de maternidade ou paternidade. Como exemplo, em França, o subsídio de desemprego pode ser requerido após 507 horas de trabalho — comprovadas pelas diferentes entidades empregadoras — e atribuído 319 dias após a inscrição neste regime social, tal como a reforma e a baixa por maternidade são calculadas segundo o princípio geral de cotizações e salários declarados. Portugal não é França, mas a comparação deverá servir para abrir caminho à criação de um modelo adaptado ao contexto do nosso país.

Para que tal aconteça, deve ser reforçada a articulação entre o Ministério da Cultura e o Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Esta articulação permitirá a criação de melhores condições laborais e sociais, assim como uma carreira contributiva regular e permanente, que garanta no futuro um presente condigno a toda uma classe artística. Neste momento de pandemia foram criadas condições excecionais na Segurança Social para os trabalhadores independentes, mas estas medidas não seriam tão necessárias se, de uma vez por todas, existisse um entendimento e uma salvaguarda das particularidades socioprofissionais da área do espetáculo.

Não obstante as boas intenções e as medidas tomadas para fazer face à covid-19, o labirinto para o qual milhares de artistas e trabalhadores independentes do setor artístico têm sido empurrados deixa visível a olho nu um edifício burocrático que neste momento fere. Fere, porque o apoio é indexado ao (diminuto) histórico contributivo de cada um. Fere, porque ainda existe muita entropia no cruzamento de dados e de informações, criando situações tão caricatas como aquelas em que trabalhadores independentes — membros de órgãos estatutários em associações culturais — não podem receber qualquer apoio do Estado (situação já resolvida para os sócios-gerentes de empresas e que todos esperam que seja decalcada para o setor cultural associativo). Se no final deste labirinto se encontrasse luz ao fundo do túnel valeria a pena percorrê-lo, mas a verdade é que findos estes apoios extraordinários (para aqueles que os consigam obter) tudo voltará ao mesmo, à casa da partida do jogo da precariedade.

Não se pode continuar a mascarar uma realidade na qual grande parte dos artistas (sobre)vive; não se deve esperar que tudo passe para ficar tudo igual. Deve-se agir já. O pós-covid-19 da cultura terá de ser o pós-precariedade na cultura.

Será então em diferentes escalas de ação que poderemos trabalhar em prol de um futuro de mudança e de transformação. O setor cultural e os políticos terão de encontrar um território comum de vontades e de lutas. Só assim serão salvaguardados os direitos básicos dos trabalhadores que prestam um serviço público e garantem a diversidade da oferta cultural ao país.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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